(o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)
Ele era o líder de importante e ativa organização espiritual, composta de elementos de elite intelectual, devotados a tenebrosas tarefas de envolvimento, em busca de domínio sobre gente encarnada e organizações humanas. Durante meses o grupo mediúnico trabalhou junto de sua comunidade, mas ele, a princípio, não se alarmou. Estavam seguros demais de si mesmos, dos seus métodos, dos seus conhecimentos, dos seus recursos. Deixavam-nos brincar, como nos disse, como crianças que acabam de ganhar brinquedo novo. Até que, um dia, importante assessor seu, conhecido na sua comunidade pelo nome de “Capitão”, veio ao grupo e resolveu mudar o rumo de sua vida. Deixou de regressar ao seu posto.
Na semana seguinte tivemos, pois, a visita do Chefe. Estava possesso, indignado, mal podia falar de tanto ódio. Trazia ameaças terríveis, desafiou-nos até para o desforço físico, se o “libertássemos” do “controle” que havia sobre ele, ou seja, a segurança do médium e dos nossos Benfeitores. Queria uma decisão, de homem para homem, pois veio para acabar com tudo naquela noite, arrasando tudo. Fez ameaças à família do doutrinador e acabou recorrendo até ao apelo, humilhando-se no pedido de que fosse deixado em paz com o seu “trabalho”.
Após cerca de uma hora de diálogo um tanto áspero e difícil, começou a haver um pouco mais de entendimento. Vinha agora a parte mais crítica da tarefa que era a da magnetização para a indispensável regressão de memória, pois era preciso localizar as matrizes do seu desespero e da sua fixação contra o Cristo. Nesse ponto também não teve receio, de início. Estava seguro das suas defesas, pois era profundo conhecedor das técnicas de aplicação de magnetismo. Eram mesmo sua especialidade, pois através delas é que manipulava companheiros encarnados e desencarnados. Disse ao doutrinador:
— Nesse ponto ainda tenho muito a te ensinar...
O trabalho prosseguiu imperturbável, até que ele começou, após longo tempo, o solilóquio que reproduzimos a seguir, tirado diretamente da fita magnética:
— Você botou algum rádio para tocar aí? Pára com esse barulho nos meus ouvidos! Desliga isso aí! Barulho terrível ... Gritos, choros misturados com cânticos... uma barulhada terrível... espadas que retinem... e chicotes... Pára com isso! Pára! Ah! que horror! Não adiantam essas imagens. Eu não vou falar delas. Não vou... Mas são ordens. O que você acha que a gente tem que fazer? (Daí em diante a narrativa fica explícita. Era oficial romano e estava incumbido de descer às catacumbas, comandando um grupo de soldados para aprisionar os cristãos). Desentocar esses ratos... ratos que estão lá, que entraram pelas tocas para cantar lá em baixo, para rezar lá em baixo. Está entendendo? Ouviu? É como um rato. Entrou nas tocas, no chão... E lá eles cantam, lá eles rezam e lá eles batizam as pessoas. Você não entende essa gente. São como detritos, que você tem que lavar, tirar e arrastar prá fora. Compreende? É isso sim. (Pausa) Loucura!... (Em seguida, transmite as ordens e as instruções aos seus comandados:) “Vamos lá! Vamos lá! Prestem bem atenção. Vocês finjam que também querem conhecer a nova seita e aí a gente entra e conhece os caminhos lá dentro e depois que estiver lá em baixo, naqueles túmulos fedorentos, escuros e sujos, a gente então os desentoca, amarra um no outro e os traz numa fila.” Para cada um há um prêmio de duas moedas de ouro... Cada um que você trouxer.
— Quantos você trouxe? — pergunta, afinal, o doutrinador.
— Ah! muitos...
— Então você recebeu muitas moedas. E quem foi que você trouxe que, de forma especial, impressionou você?
O doutrinador vale-se aqui de sua intuição, mas há um bom suporte lógico para elaborar aquela pergunta. A memória do nosso querido irmão não iria saltar por cima de quase dois milênios para cair numa batida de rotina nas escuras catacumbas romanas. Alguma coisa houve ali e entre os prisioneiros, certamente, havia alguém importante para ele naquela noite especial.
— Domênica!
— Quem era ela?
— Não tinha que estar lá. E estava.
— E o que foi que você fez com ela? Entregou-a também aos guardas?
— Eu tinha que entregar. Eram vários soldados que eu comandava.
— Você a conhecia?
— Domênica...
— Você a amava.
— Era a minha prometida.
— E que aconteceu com ela depois?
— Ela foi uma das tochas naquela festa, naquela orgia terrível!
— E você estava lá, também, naquela orgia?
— Eu não podia fazer nada. Não podia salvá-la. Ela não quis. Fez-me jurar. Ela teria que abdicar aquela maldita seita. Eu podia tê-la salvado, sim.
— E por que não a salvou?
— Para não me comprometer. Eu estava juntando aquelas moedas todas para o nosso casamento. Queria ficar rico para ela.
— Mas ela não quis essa riqueza, não é? E o que aconteceu mais tarde?
— Eu matei mais. Eu tinha que... a minha dor, a minha raiva, o meu ódio...
— Matando mais você conseguiu aplacar a sua dor, o seu ódio?
— Eu tinha que me vingar. Queria ver correr o sangue... correr sangue... às enxurradas. Cortava os pedaços para ver correr sangue, igual se faz com uma ave que você mata para sacrificar aos deuses. Você corta o pescoço e deixa o sangue correr para poder libar aos deuses! (Diz isto aos gritos) E eu fiz libações com o sangue deles.
— Você era um oficial?
— Eu era um oficial e tinha um futuro muito brilhante.
— E esse futuro se realizou depois? Você conseguiu a posição que queria?
— Fiquei rico, porque havia uns porcos daqueles ricos e o imperador me dava os despojos.
— Continuemos. E daí?
— Daí o que você quer? Tinha que vingar meus sentimentos!
— Está bem. Você se vingou, matou e ficou rico, mas depois chegou também ao término da sua existência, não é isso? (Parece não ouvir o doutrinador).
— Sabe como é que ela era? Tinha os cabelos dourados, lindos, que caíam nos ombros. Uma boca bela... Olhos doces. Sabe de que cor eram os olhos dela? Cinzentos... cinzentos. Conhece alguém de olhos cinzentos?
— É uma cor muito rara para os olhos.
— E os olhos dela mudavam de cor, você sabe?
— Era bonita, hein?
— Havia dias em que eles estavam esverdeados; outros, completamente cinza. E ela destruiu isso tudo por causa de um maldito carpinteiro que morreu numa cruz como um ladrão vulgar.
— Pois é. Devia ser um ideal muito profundo, não é? Com muita convicção, muita fé.
— Não. Ela foi iludida. Ela era jovem.
— Mas, se ela foi iludida, por que você não a salvou?
— Porque ela não quis.
— Não quis e você teve receio de se comprometer. Você já me disse. Mas, me diga uma coisa, meu irmão. Você a encontrou no mundo espiritual, depois daquela existência? Ou nunca mais a viu?
— Para que você quer saber?
— Isso é importante porque eu queria saber se ela abandonou você.
— Eu a vi uma vez, mas havia um abismo entre nós. Eu não podia chegar lá, porque faltava um pedaço de chão... Ela disse que eu tinha que voltar para colocar um chão sobre aquele abismo. Você sabe, entre mim e ela havia um rio de sangue. Um rio de sangue! E eu não podia passar. Então, eu precisava construir uma ponte. O Cristo foi uma praga que veio para o mundo! Acabou com tudo. Louco mesmo! Domênica...
— Preste atenção. Aquele episódio está passado. Ficou lá na Roma Antiga, mas traumatizou o seu espírito por muitos séculos...
— Horatius, eu...
— Então, Horatius, por causa daquilo você não se tomou um réprobo, um miserável, um desgraçado, um esquecido da sorte e de Deus. Você continua sendo um filho de Deus e Domênica o ama. Mas chega de loucuras. Em vez de construir a ponte sobre esse rio, você está jogando mais sangue nele, meu filho!
— Foi isso que eu fiz, que você falou aí. Engrossei mais as águas. Eu... eu... Mas não entendo... Eu disse a ela que queria fazer a ponte e aí ela disse que eu precisava defender as idéias do Cordeiro. Mas fui defender e complicou mais.
— Complicou porque você cometeu outros enganos.
— Não, não, não. Eu mandei sacrificar, sim, muita gente, mas que era contra o Cordeiro. Eu... eu... tinha que decidir contra os hereges (Inquisição?), os hereges...
— Você continua, porém, a engrossar o rio. Vamos, agora, voltar ao momento em que você está aqui diante de nós, e diante do Cristo e diante de Deus. Agora não é hora mais de mentiras, nem de enganos. É hora da verdade. Você não foi abandonado pelo Cristo. Domênica também não o esqueceu. Então, meu filho, nesse ambiente em que você estava vivendo ultimamente conseguimos fazer uma ponte até você para que o pensamento dela chegasse até o seu coração, a fim de provar a você que ela continua a amá-lo.
— Eu vi os olhos dela...
— Agora você vai ter uma entrevista com ela para que tenha certeza de que não pretendemos destruí-lo. Estamos fazendo isto com ela, que está junto de nós, ouviu?
— Isso é uma loucura e você é o responsável. Você causou uma interferência na minha corrente mental. Eu a ouvi dizer: “Horatius, vem comigo...” E não posso, porque há um rio de sangue entre nós. Sei que não vou, não tenho nenhuma ilusão; não vou porque tem um rio. E o trabalho que eu estava fazendo para construir a ponte, você destruiu.
— A ponte fomos nós que construímos, não foi você. Você estava é aumentando o abismo. Meu querido, por que ela não foi antes a você? Porque não havia ponte... Ela estava lá, em pensamento, mas você não a aceitava. Só depois que construímos a ponte é que você viu os olhos dela, de que tanto gostava... aqueles olhos cinzentos. Esse dia em que você os viu, como estavam eles?
— Belos... azuis... E eu, de repente, me senti jovem, formoso. (Tem um sorriso triste e acrescenta:) Mas, isso tudo é uma loucura! Não, meu caro, a Lei... devo muito à Lei. Devo. E ela se entregou a “Ele” há muito tempo. Devo e não tenho moedas para pagar. E... para juntá-las, eu teria que ser escravo de um corpo doente, talvez, escravo...
— Escuta. Não vamos enganar você, que será tudo um mar de rosas. Não vai. Vai haver sofrimentos, vai haver dor, mas também o trabalho da reconstrução. Você é um espírito bem dotado de recursos, desde que você os utilize bem. Por favor, não aumente esse rio de sangue que ainda tem aí. É preciso que você agora passe a resgatar aqueles a quem sacrificou. Ajude àqueles que sofrem...
— É um horror! Você sabe o que tem dentro da minha cabeça, da minha mente? Você não sabe... Você sabe de umas torturas que se faziam, de jogar os hereges dentro de um poço? Fui eu quem deu essa idéia...
— Com serpentes?
— Não, com água, para afogá-los.
— Mas isto não quer dizer que você vai continuar cometendo loucuras. Chega um ponto em que você começa a se redimir. Você conta com o apoio dela e a compreensão do Cristo, que também o ama, que nunca o abandonou.
— Mas tenho os meus pupilos. Não posso deixá-los lá. Tenho que voltar.
— Espere um momento. No estado em que está, você não tem condições de ajudá-los.
— Como não? Eu sou forte, tenho minha mente.
— Sei, mas e o coração? Você não tem condições nem de ajudar-se a si mesmo, como vai ajudar os outros? Primeiro, você precisa reconstruir o seu mundo espiritual.
— Onde está o meu amigo? (O Capitão).
— Está conosco. Você fica, então?
— Ele estava comigo naquela noite. Estávamos juntos. Sempre estivemos juntos.
— E vão continuar juntos, mas, por favor, não façam mais loucuras, ouviu, meu filho?
— Você não sente o cheiro? O cheiro do sangue... Horrível!...
— Você agora vai seguir com os nossos companheiros, para repousar e arrumar as suas idéias, a fim de ter, eventualmente, um encontro com ela.
— Encontro com ela? Eu não posso ter um encontro com ela. Não construí a ponte; não posso passar, meu caro.
— Ela o ajudará a fazê-la.
— Posso cair nesse rio. Não vou conseguir chegar a ela.
— Vai sim. Não será fácil, mas é possível. Terá nosso apoio e a assistência que precisar, mas não se iluda, o trabalho tem que ser seu.
— Você conhece aquela história do homem rico que morreu e foi para o seio de Abraão? Pois é. É aquela distância. Os que estão lá em cima não podem descer; os que estão aqui embaixo não podem subir. Eu estou aqui embaixo.
— Todos nós estamos aqui embaixo.
— Não posso subir. Eu fui julgado e condenado.
— Pode sim, todos podem. A sua consciência realmente o acusa de muitas coisas mas Deus dará a você todas as condições e o Cristo não faltará a você. Ore e peça ajuda.
— Minha mente era uma usina, acesa, iluminada; agora está em confusão, com tudo às escuras. Houve uma pane, um descuido... qualquer coisa.
— Um momento. Enquanto a sua mente está assim, você dá uma oportunidade ao seu coração.
— Minha mente era uma casa de máquinas...
— Era... mas o conhecimento adquirido você não perde; você poderá utilizá-lo para o bem; mas por enquanto você vai ficar privado dele, para que não recaia em novos enganos. Deixe desenvolver o sentimento de afeição que você traz no coração pela sua amada. Venha conosco. Nós o levaremos a ela.
— Não... não posso ir a ela. Não tenho ilusões...
— Agora você vai em paz, com os nossos irmãos espirituais que vão ter por você muito respeito e carinho. Não tenha receio. Pedimos perdão pelas imagens que tivemos que despertar no seu espírito.
— Não deixe, por favor, que a minha mente se apague! Estou perdendo o controle... é como se as luzes se fossem apagando uma a uma... Eu... não posso... Está apagando... estou perdendo o controle da memória. Por favor... por favor...
O Espírito é adormecido e retirado. Aí está mais um exemplo de como um episódio isolado e de natureza puramente pessoal, que muitos diriam suscitado pelo mero acaso, pode causar um impacto que vai ressoar durante milênios e provocar desajustes tão profundos e dolorosos. As linhas mestras da história, que poderia ter uma seqüência feliz, terminou em tragédia.
Horatius amava Domênica, a moça de olhos cinzentos e cambiantes. Era ambicioso e sonhava com glórias, riquezas e poder. Para oferecer à noiva o conforto material que o dinheiro proporciona, entregou-se à nefanda tarefa de caçar os pobres cristãos que se reuniam nas catacumbas romanas, último refúgio de uma classe perseguida. As ordens “de cima” eram para “desentocar aqueles ratos” indesejáveis e exterminá-los. O incentivo fixado era o de duas moedas de ouro para cada um deles aprisionado. Saíam das sombrias e profundas catacumbas amarrados uns aos outros e seguiam direto para a prisão e, dali, para o suplício.
Numa dessas investidas, Domênica, a moça de olhos cambiantes, estava entre os “ratos sujos na toca escura”... Ela também rendeu a Horatius as duas fatídicas peças de ouro, e nem ela desejou ser salva (salva?) à custa da renúncia à sua fé no Cristo, nem ele teve coragem suficiente para expor-se, na tentativa de subtraí-la ao suplício. Ela, como os seus desventurados companheiros, serviu de tocha humana para iluminar as orgias dos “grandes” da época. Eram besuntados com betume e pregados a uma cruz ou a um poste, onde ardiam, enquanto os poderosos se divertiam pelos jardins, rindo, comendo, bebendo, alucinados, inconscientes, insensíveis...
Horatius ficou sem a noiva, mas continuou a enriquecer e a matar, fazendo verdadeiros rio de sangue, rio que mais tarde ele veria no mundo espiritual a escorrer grosso e escuro no fundo do abismo que o separa até hoje da sua amada. O culpado disso tudo? O Cristo, naturalmente, iniciador daquela “maldita seita”, que veio ao mundo como “uma praga”, viveu como “um carpinteiro maldito” e morreu como “um criminoso vulgar”...
Mais tarde, Domênica lhe pediu que voltasse à carne e procurasse propagar as idéias do Nazareno, a quem ela amou e compreendeu desde cedo. Ele veio. Como campo de trabalho, optou pela Igreja e, da sua posição e da sua imunidade, entendeu que adotar a doutrina de Jesus implicava eliminar todos aqueles que não concordassem com o Mestre, como ele próprio não concordara antes e ainda não o aceitava, a não ser na exteriorização das aparências. Exterminou os chamados hereges e chegou mesmo a inventar um novo suplício: o poço.
Depois de tudo isso, e novamente de volta ao mundo espiritual, viu que a distância entre ele e sua Domênica aumentara, o abismo se aprofundara e o rio de sangue engrossara perigosamente. Daí, o desespero total, a convicção de que jamais poderia cruzar aquele rio tenebroso de sangue e de lágrimas, para alcançar a amada e contemplar-lhe novamente os olhos cinzentos.
Mas nem assim abandona a desabalada corrida ao encontro do desatino, cada vez mais profundo. Convence-se de que a sua tarefa de agora, no comando de um poderoso e bem adestrado grupo de companheiros tão desvairados quanto ele, acabará finalmente por possibilitar-lhe construir a ponte e cruzar o rio.
O Cristo? Não importa. Teria mais poder do que ele, o Nazareno e, então, iria buscar Domênica...
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