(o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)
O companheiro espiritual a que se refere a presente história manifestou-se mansamente e com forte sotaque português, saudou-nos com farta distribuição de elogios, figurando-se como um ser humilde, consciente de suas limitações ante pessoas tão ilustres. Vinha oferecer seus modestos serviços, sua ajuda de servidor de Jesus e trabalhador do Espiritismo, precisamente porque certas tarefas são mesmo atribuídas a Espíritos de menores recursos.
Resolveria pequenos problemas humanos, recomendaria remedinhos para as nossas mazelas, promoveria inesperada chegada de dinheiro para aqueles que dele precisassem, pois, como sabíamos, no mundo em que vivemos, infelizmente, é necessário dinheiro para praticar a caridade... Enfim, uma figura simpática, humilde e serena, que somente deseja ser aceito para servir.
Depois de algum tempo em que é deixado falar livremente, o doutrinador lhe pede com bons modos que assuma a sua verdadeira personalidade. Ele ainda negaceia, mas acaba cedendo, abandonando a farsa. Ri, algo desconcertado, mas logo se recupera e passa a uma súbita agressividade, em tom de voz inteiramente outro, já sem o fingido sotaque.
Daí em diante, a conversa ainda é deixada seguir ao sabor da sua vontade, a fim de que seja possível estudar melhor as suas motivações e a sua filosofia de vida. Sua posição é, em resumo, a seguinte: trabalha pela divulgação do bem, da verdade, da justiça. (Isto é quase um “slogan”, ao qual nos habituamos). A prece deve ser uma força dinâmica convertida em ação. O erro não existe senão quando o admitimos em nossa consciência, pois ele é parte do nosso processo evolutivo, dado que aprendemos através dos acertos e dos erros. (A perigosíssima técnica da meia-verdade!) Quando, por exemplo, alguém se coloca atravessado no nosso caminho e nos impede a passagem, devemos removê-lo sumariamente, sejam quais forem os métodos. Deus colocou ali aquele obstáculo apenas para testar-nos. Não existe erro algum em liquidar o obstáculo. Quanto a ele, é um Espírito liberado. (Rejeita a palavra redimido...) É um cristão liberal, pois o Cristianismo tem falhas humanas, tanto quanto o Espiritismo. O Cristianismo do Cristo teria morrido com o Cristo; o que existe hoje é o Cristianismo humano.
A essa altura, já caracterizou que dispensa o Cristo, dado que todos nós podemos ir diretamente a Deus. Não vê, portanto, muito sentido em orar a Jesus, como de hábito fazem os espíritas, o que ele condena veementemente. Declara, a seguir, que até a ele muitos são os que oram, e ele atende a essas preces. (Teria tido alguma encarnação em que foi beatificado ou tido como santo, ou está apenas mistificando? Admitimos mais a primeira hipótese, mas não se força nenhuma declaração de sua parte).
Combate, também, nos espíritas, a lamentável tendência de viverem falando em culpa e em carma. É preciso, a seu ver, libertar-se desses conceitos e viver como ele que, insiste, é um Espírito liberado. O sentimento de culpa amarra as pessoas. O erro — volta ao tema — é apenas uma imagem na consciência; não existe em si mesmo. Sem sentimento de culpa, o erro não existe.
Nesse ponto já temos o seu retrato moral e podemos inferir a profundidade de suas angústias e o peso de suas culpas. Ê preciso ir buscar as razões ocultas desses desvios e desse doloroso processo de auto-hipnose.
Logo após a prece, na qual pedimos por ele e por nós, começa a magnetização e, em breves momentos, ele começa a perceber a formação de uma névoa em torno dele, como se fosse, no seu dizer, “uma teia de aranha, pegajosa”. Nesse ponto, quer retirar-se, propondo que cada um siga o seu caminho, realizando seu próprio trabalho e agradecendo a oportunidade da conversa que foi “muito iluminativa”.
O sono começa a invadir a sua vontade e uma inesperada e aguda sensação de dor se manifesta no tórax, como se um punhal ou uma lança tivesse trespassado os seus pulmões. A dor se irradia pelo braço e começa a espalhar-se pelo corpo, do que ele se queixa, já bastante aflito e muito perplexo. Mas ainda insiste que não tem culpa alguma na consciência.
É a partir desse instante que reproduzimos o diálogo. A palavra inicial é dele:
— Que coisa estranha! Que é isso? Está doendo muito. É como se me transpassassem o pulmão com uma lança, mas nunca me aconteceu isso. Meus registros mentais não identificam... Não houve essa passagem na minha vida. Mas meu pulmão está afetado. O pulmão esquerdo... mas meus registros mentais não têm nada disso catalogado lá. Sou um homem inteligente, meu caro. Você não vai me levar com facilidade, não.
— Como é que você explica, então, essa lança?
— Não sei. Meus registros mentais não detectam...
— Sim, mas seus registros mentais também não acusam a culpa e ela está aí.
— Que culpa? Estou sentindo uma dor. Isso não tem nada com culpa!
Interrompe para gemer e queixar-se de que está doendo cada vez mais e nada tem a lembrar, como sugere o doutrinador. Geme e se lamenta de que a espinha parece quebrada. A dor aumenta.
— Como é que você, na condição de Espírito — diz o doutrinador —, pode sentir uma lança atravessada no seu corpo? É porque está na sua lembrança!
— Não. Eu não fui atravessado por lança nenhuma! Que absurdo! Alguma psicose em mim. É esse toque seu, aí. Você tocou em mim e provocou tudo isso. Ai! Você é que foi culpado de tudo isso. Se você ficasse sentadinho ali no seu lugar... (Pausa). Ninguém me atravessou com a lança. Ninguém se atreveria. Não em mim, um nobre. (Já está, pois, mergulhando mais fundo nas lembranças). Um nobre romano, meu caro... Um nobre, membro da casa real, está entendendo? Ai! Está doendo. Que coisa absurda! Nunca ninguém me atravessou com uma lança. Ninguém se atreveria! Ainda mais pelas costas, quebrando a espinha e atravessando o pulmão. Sabe lá o que é isso? Só aqueles míseros cristãos é que sofreram isso. Eu não sou cristão. Você está entendendo? Ai! Não posso nem mexer a cabeça; está doendo aqui... Está me doendo! Onde está o nobre Caligula? (O doutrinador se mantém em silêncio). Você conhece porcos? Ai! Porcos! é isso que os cristãos são: porcos! Porcos em manada que você mata para limpar o chiqueiro daquele cheiro horrível! Você foi um porco desses. Seu Paulo foi outro porco! Cristãos a gente mata, está entendendo? Você está ouvindo? É isso que a gente faz!
— Mataram até o Cristo, não é?
— Claro! Precisavam limpar o Império dessa praga. Cristãos a gente mata! Em magotes... Que diferença faz como eles morram? Não é? Que diferença faz?
O doutrinador faz uma pergunta que a intuição lhe sopra:
— Não havia entre eles alguém que você amou?
— Não. Nada. Eu nunca amaria um cristão.
— E uma cristã?
— Nem uma cristã. Nunca amaria uma cristã... Seria uma traição a todos os meus
princípios. Nunca... (Pausa). Você está vendo? Vê como sou jovem e belo? Minha
túnica, você vê? Garboso. Estou aqui na tribuna de honra (no circo). Sou um nobre, meu caro. Um nobre. E um nobre não se mistura com essa gente fedorenta, que cheira mal. O cristão cheira mal. Depois, o que? Não aconteceu nada! É mais um magote que está ali (na arena, para morrer). Mas por que estou falando em cristãos? Não tenho nada com eles... Eu estava falando em que? Em que? Minha mente está embaralhada. Que confusão! Não, não. Eu estava pregando uma doutrina... perdi o fio (Mistura, evidentemente, o teor da sua conversação de há pouco, com as lembranças da remota encarnação ao tempo dos Césares, no momento em que assistia da tribuna de honra mais um sacrifício de cristãos.)
O doutrinador insiste:
— Quem é que você tinha lá, no meio daquelas pessoas que foram sacrificadas? Uma mulher? Como é que ela se chamava?
— Ninguém... ninguém... Ela quem? Nenhum romano ama uma cristã; cristã; se quiser faz dela uma concubina, está entendendo? É uma honra que você concede a uma escrava que você não a ama. Não mistura o seu sangue com o dela. É uma praga...
Embora insista em que nada mais tem a dizer, prossegue, na compulsão de dizer a verdade:
— Sou filho único de uma nobre família. Aquilo é um bando de porcos... Só que tinha alguém no meio deles com jeito de nobreza. Devia ter algum resto de nobreza. Ai! Está doendo! Eu não a conheço. Não conheço aqueles olhos. Se era bonita? Que é isso? (Ao dizer-se filho único deseja caracterizar a rejeição da irmã que, ao se tomar cristã, deixou de existir socialmente).
— Como é que ela se chamava?
— Não sei. Nem eu nem meu pai sabemos. Ela morreu... morreu, simplesmente. E não sabemos como. Acabou... (Não quer admitir, ainda, que ela morreu ali na arena). Foi isso... (Pausa). Aqueles olhos me fitando... Ela havia ficado louca. Enlouqueceu. Eu jamais pronunciaria essa palavra. Sou órfão, está entendendo? Sou órfão. (Ficamos sabendo que a mãe também está ali, envolvida, e que também a rejeita). Não me pergunte como ela morreu. Uma nobre, misturar-se com os porcos... Foi isso que ela ganhou. Foi isso...
— E você nunca mais a viu?
— Não quero ver nada. (Geme de dor, sentindo as pontadas da lança). Precisou de um golpe de misericórdia. Era preciso que alguém desse um golpe de misericórdia. Era preciso... (Geme, grita de dor e depois:) Isso já passou, meu caro. Ficou no passado. A gente tem muitas mães. Outras mães, outras noivas, outras esposas. Você se esquece do magote de cristãos. Esquece...
— Escute, meu querido. Você não ficou órfão. A mãe nunca abandona um filho.
— Ela abandonou. Ela preferiu aquele mísero Galileu lá; preferiu misturar-se com aqueles porcos fedorentos. Cristão cheira mal! Ela recebia na sua casa... (Não conclui. Imaginamos que fossem pessoas importantes, talvez o próprio Caligula, de quem o Espírito manifestante foi amigo pessoal). Foi ela também que induziu a nobre Leila. Foi ela. Ela que induziu. Leila Lavínia... nome lindo! Isto é uma loucura! Você está criando uma loucura. (Volta a gritar de dor e a queixar-se de violentas pontadas no tórax e do esmagamento na espinha. E segue a narrativa implacavelmente:) Que horror! Preciso matar o Cristo e destruir essa doutrina. O Cristo precisa morrer outras vezes. Todos os cristãos imundos... Solte a minha mão, se você é um cristão! Imundo! Tenho nojo de cristãos... Me leve daqui! Ai! Que dor... Mas não foi em mim que essa lança penetrou: foi nela! Por que estou sentindo a dor? Você está me induzindo a ter um sentimento de culpa na minha mente. É isso. Esse é o mal! Você está me induzindo. Essa técnica mórbida! (A admissão da culpa). Era preciso dar o golpe de misericórdia... Não era preciso?
— Não sei, meu amigo. Você considera que foi um erro ou não?
Ele está claramente confrontando a sua filosofia com os fatos das suas vivências. Como se lembra o leitor, ele achava que erro só existe quando a gente admite a culpa na consciência.
— Não era preciso? Deus é a única realidade. Eu estou em Deus. Não tenho dores... (Repete isso várias vezes, tentando novamente o recurso da auto-hipnose). Não tenho, não tenho... Ai! está tudo quebrado... tudo quebrado... Pare com isso! Tire essa pressão da minha mente, que você colocou aí. Tire essas teias... (Novamente reage e diz com voz firme:) Sou um homem e um homem
não chora, está entendendo? Não se lamenta. Você está me reduzindo a quê? A um porco cristão? Você está se vingando.
— Vamos pedir, então, à sua Leila Lavínia e à sua mãezinha que lhe venham ajudar.
— Você pode orar e pedir para ajudar...
— E lembrar a você que elas não te esqueceram e que continuaram a te amar através desses “séculos todos. Você é que fugiu delas e não elas de você. Está entendendo?
— Pára com isso... Pára! Isso tudo é ilusão, meu caro. Eu já fui até um Papa, meu caro. Já fui tudo isso. Que me adiantou? Não cheguei a Deus, que eu procurava. Meu caro... meu caro... ai... ai... A minha biga! A minha biga! Quero passar por cima desses cristãos com a minha biga! Quebrar costelas, quebrar espinhas, quebrei ossos, quebrei tudo! Passei com a minha biga. Passei por cima deles com a minha biga! Por quê? Por quê, meu Deus? Os ossos todos quebrados! Mas eu não estou quebrado... Não posso chorar, não sei chorar. Não posso! Tenho medo. Não faz assim...
— Escuta, você é meu irmão e meu amigo. Você tem medo de quem? Da sua mãe? Tem medo de Lavínia? Elas te receberão... Tenha coragem.
Repete baixinho, como uma criança perdida e apavorada:
— Tenho medo... Matei tanto!
— Meu irmão, isso passou e você vai ter oportunidade de desfazer tudo.
— Fantasmas! Fantasmas... Cristãos gritando! Não sou cristão! Jurei que nunca seria cristão. Serei sempre um acusador do Cristo, porque ele destruiu tudo o que eu mais quis.
— Não, meu querido. Quem destruiu foi você mesmo, não o Cristo. Pergunte a elas se elas se consideram destruídas.
— Meus sonhos de jovem... Fiquei sozinho naquele palácio. E meu pai batendo a cabeça pelas paredes em desespero. Enlouqueceu. Fiquei sozinho... Não tenho mãe. Todos estão mortos. Só eu aqui, sozinho, nessa casa. Sozinho ... Quero estar cego, quero estar surdo... A biga! Sou um herói, sou um herói! Eu matei!
Em seguida, o Espírito informa que foi servir Roma, na Palestina, e prossegue:
— Ganhei muitas condecorações.
— Quem você conheceu lá, naquela época?
— O Tetrarca.
— E também aqueles que trabalharam junto com Jesus?
— Não me misturo com essa ralé.
— Mas você conheceu alguém da ralé?
— Eles todos são gentinha, são estrangeiros... Inferiores. Mas agora quero ficar aqui. Não quero voltar mais.
— A Roma? Por quê? Tem que haver uma razão.
— Não vou tomar este navio. Eu não vou! Não quero voltar lá! — diz já em pânico. Só tenho que pensar nas minhas conquistas, na minha carreira.
— E então você ficou, não é?
Ele hesita e titubeia. O doutrinador não está entendendo direito o que se passa na sua mente. Só depois a coisa se esclarece. Ele teme prosseguir a narrativa, porque acontecimentos terríveis tem ainda a relatar e se “toma o navio” (que, de fato, o levou de volta a Roma) não conseguirá fugir à verdade dos seus tremendos desenganos. Ele explica o seu dilema num jogo de palavras algo cifrado, mas que faz pleno sentido no contexto em que se acha no momento:
— Eu... não ... eu voltei, mas não vou voltar outra vez. Você não me vai fazer voltar lá agora! Não vou voltar! Não quero voltar! (Voltar por meio da regressão).
O doutrinador fica pacientemente a insistir, oferecendo seu apoio. Ele prossegue, a despeito de si mesmo.
— Eu... (Pausa) Foi horrível! Este tropel de cavalos... Eu... estou num albergue, você sabe, pois só quero chegar amanhã à cidade. (O leitor, naturalmente, sabe que Roma não é porto de mar e que os navios deixavam os passageiros em cidades costeiras. O resto da viagem era por terra). Só amanhã, mas a notícia da minha volta já se espalhou e no meio da noite este cavalo... É o Salústio. Ele entrou, ajoelhou-se aos meus pés, pôs a cabeça no chão, entre as mãos. Batia a cabeça e chorava, e chorava... “Meu Senhor Demetrius”, disse ele. Eu quis saber o que. Estava impaciente, quase a chicoteá-lo. Isso não é atitude para um escravo: acordar-me assim no meio da noite! Fi-lo ficar de pé, sacudi-o e ordenei que falasse e ele disse que a desgraça tinha entrado em nossa casa.
— Como assim?
— Na minha ausência, a minha jovem irmã conheceu um louco representante daquele... Um homem que não teve nem medo de enfrentar a César. (Refere-se evidentemente a Paulo de Tarso, que teve uma audiência com Nero, como se sabe). E elas foram ouvi-lo. Eles usavam um manto para se esconder, quando iam aquelas mulheres. Numa expedição — não minha, porque eu estava... (fora de Roma). Diz Salústio que elas tinham vindo acorrentadas. Ele as viu. Ambas.
— Eram duas irmãs
— Não. A minha mãe e a minha irmã. E ele disse que só havia uma salvação: que eu fosse depressa ao Palácio pedir por elas. Eu achei que ele estava louco e o joguei no chão, com raiva. Quase o pisei! Onde já se viu? A minha mãe e a minha irmã!... Nunca! Jamais! Elas têm sangue patrício! Mas ele estava tão aflito! Eu disse que de manhã seguiríamos. E fomos. Mas, estava tão cheio... Soldados ... Houve qualquer coisa em Palácio e eu não pude entrar cedo. Quando consegui, me disseram que César não estava em Palácio. Tinham ido todos para aquele maldito lugar.
— Para o circo.
— Fui correndo. Não poderia ser... Salústio disse que tínhamos tempo. Eu trazia muitas medalhas e César sabia. Recebeu-me em seu camarote... (Interrompe por um breve instante, muda de tom e fala gravemente:) Isto.era uma honra! Você sabe que era uma honra? No camarote de César! Sentado ao lado de César!... (Interrompe, novamente, sacode-se num espasmo violento e diz com voz seca:) Estou cego! Não vejo! (Ao que parece, trata-se de mais um mecanismo psicológico de autodefesa: ele não quer ver). Não vejo! Meus olhos não veem!
— A sua mãe e a sua irmã foram sacrificadas, então?
— Não. Eu não vi isso! Não vi ninguém! (E repete, aos gritos, que não viu ninguém). Só aqueles cabelos... aqueles cabelos... que lhe cobriam o rosto curvado. Fiquei louco de dor e agonia... Sabe o que eu fiz? Decidi que iria queimar todo pregador que encontrasse... em óleo... em óleo! E queimei alguns! Em óleo! Em óleo! Para sentirem bem a dor que eu senti. O meu ódio... Você sabe o que é queimar em óleo?
— Meu filho, isso tem muito tempo, mas as marcas daquele ódio e também daquele arrependimento ficaram em você. Hoje você não faria mais aquilo.
— Eu via fantasmas, eu via! Depois do primeiro que ajudei a sacrificar, voltei para casa, aquela casa vazia, porque a minha irmã e a minha mãe não estavam — e me pareceu ver a minha mãe. Era um fantasma... Aqueles olhos me olhavam e ela dizia: ”Meu filho! Meu filho! Não manche mais as suas mãos... Deixe que meu sangue lave as suas mãos”. Que horror! Uma patrícia não falaria isso! Não pediria um favor... Eu disse: “Não, mãe. vou me vingar.” Cada vez que eu fazia um sacrifício desses ou outros, ouvia aquela voz que me dizia: “Meu filho! Meu filho! Pare!” Um dia fiquei desesperado, porque perdi um desses malditos. Ele ia fugindo e eu o apunhalei. Então, você acredita? quando ele ia caindo, quem eu vejo amparando-o? A minha mãe! Ela me olhou, chorando, e disse: “Meu filho, olhe!” E vi o meu punhal cravado no coração dela. Fiquei louco... O que é ser um homem? Aprendi que ser homem era ser rígido, era ser forte, era ter o peito condecorado, era vencer, era ter um trono, era carregar uma coroa de louros... Que é ser um homem?
— Ser homem é o que você vai ser agora. Você vai ao encontro da sua mãe, que há tanto tempo o aguarda. Ela não se esqueceu de você. Não o abandonou.
— Ela deve estar ainda com aquele punhal.
— Não está. O punhal está em você. No seu remorso, nas suas angústias, nos seus desenganos. Agora você pára um pouco para pensar. Dê ao seu espírito uma oportunidade de se recuperar, de refazer as coisas que fez errado. Vem conosco. Fica conosco algum tempo para descansar e colocar tudo no lugar. Na oportunidade que for possível, a sua mãe virá te ver. Está bem?
— Mande embora esses fantasmas! Esse tropel sempre se repetindo na minha cabeça. Às vezes sinto o cheiro dessa fumaça do óleo queimando. Me dá náuseas, me enjoa, me dá vômitos, me sufoca! Mas isto é só um pesadelo, não é? É um pesadelo!
— Você acha? Quer fugir de novo? Você há pouco perguntava o que é ser homem. Um homem é aquele que enfrenta as suas deficiências, os seus erros, os seus enganos e luta contra isso.
— Para onde vou? De onde eu vim? Já não sei mais... Não sei... De repente, se apagou uma coisa, como se o trecho de um caminho tivesse desaparecido. Não sei mais voltar. Estou confuso... tenho medo...
O doutrinador diz uma palavra final:
— Então você vem e fica conosco algum tempo. Vamos te ajudar. Você me perdoa se a nossa conversa aqui, às vezes, foi um pouco áspera e difícil. Não foi falta de respeito, nem de compreensão, nem de amizade por você. Foi necessidade de despertar o seu espírito para essas coisas que você precisava considerar. Não nos leve a mal. Somos todos amigos e irmãos. Agora você segue com os nossos companheiros aqui presentes. Vai em paz! Vamos orar por você. Deus te abençoe. Ninguém te detesta, ninguém tem ódio por você.
— Estou vendo... Onde estou? Onde? Salústio! Eu o vejo! Mas... que faz ele aqui? Ele já morreu há tanto tempo! Salústio... Dar a mão a ele?
O médium estende lentamente a mão e o Espírito é retirado. Não é difícil visualizar a cena terrível, com todo o impacto daquela tragédia. Chegou tarde demais ao César, mas dali, da tribuna de honra, (era uma trágica honra e uma dolorosa ironia!) assistiu ao trucidamento das duas criaturas a quem amava e que não via há tanto tempo. Estavam sendo sacrificadas impiedosamente, humilhantemente, duas patrícias romanas, à vista de toda a nobreza e do povo ignaro, naquele sórdido espetáculo de barbarismo. Ainda as encontrou com vida e as sacrificou com o golpe de misericórdia, a que se referia anteriormente.
Depois disso é o desvario completo, alucinado, implacável. A dor que sentia no pulmão perfurado era, portanto, a daquele punhal que, cravando-se nas costas do pobre condenado que tentou escapar de ser fritado vivo, foi localizar-se, na visão espiritual, no coração de sua mãe.
Essas lembranças terríveis levam-nos a entender por que criou todo um sistema filosófico de “liberação” através da rejeição deliberada da culpa, porque o erro só existia para ele quando admitido pela consciência.
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