(o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)
A narrativa começa no ponto em que o Espírito, já magnetizado, começa a tornar-se sonolento e, temendo o mergulho no passado, tudo faz para desligar-se do médium.
— Estou com um sono terrível. Não estou com sono; estou hipnotizado, estou dominado. Você me dominou. Preciso sair deste aparelho, me desligar, me desimantar. Por que você botou essa coisa em minha volta? Essas ondas que você emite... Você me prendeu dentro delas. Você me prendeu... prendeu... Está rodando... Que coisa horrível!
— Que tem você contra o Cristo?
— Não tenho nada contra o Cristo. Já ultrapassei essa fase.
— Por quê?
— Porque adotei a doutrina, já preguei a doutrina. Já representei o Cristo tantas vezes. Para que ficar parado, se você pode prosseguir?
— Sei. E quando Ele esteve aqui, onde você estava?
— Estou dominado! Que horror! Não vim aqui para ser dominado. Que você tem aqui dentro? Que tem este aparelho, que vocês dois me neutralizam? Sou um homem frio e vocês dois me neutralizam. Não tenho mais forças. Eu devia ter sabido disto.
— Escuta, meu querido, alguma coisa te fiz para te ferir, no passado? Prejudiquei você de alguma forma? Se isso aconteceu, quero pedir perdão, mas, por favor, aceite-me como seu irmão, seu amigo, aquele que deseja oferecer a você...
— Você prejudicou um sobrinho meu, muito querido.
— Ah, sim? Como é que foi isso?
— Você... (Cita o nome que o doutrinador teve numa encarnação no século XII, quando foi monge francês). Você me faz flutuar... me sinto flutuando. Não sei onde estou. Minha cabeça está flutuando. Uma nuvem, uma nuvem... Estou dominado. Eu... eu...
— Vocês sabe o que aconteceu depois, com aquele sobrinho seu?
— Não estou interessado...
— Sabe que ele foi, mais tarde, meu filho e que, antes, já havia sido também? Sabe por que nos desentendemos? Porque também havia doutrinas...
— Por que não consigo subtrair-me de sua influência?
— Porque ele estava tentando pregar doutrinas nas quais o Cristo parecia não ser mais necessário. Quem somos nós, para afastar Jesus dos nossos caminhos? Quem somos nós para tentar viver sem o Evangelho? Que foi que você conseguiu nesses séculos todos, tentando viver sem o Evangelho? Achando que ele está superado...
— Não. Vivi o Evangelho, muitas vezes. O Evangelho para você é uma farsa. A Igreja foi uma farsa, tudo falso. No fim, o que se queria era o ouro, a prata, a posição... tudo falso!
— Meu querido. Você continua a repetir o mesmo engano. Você está ainda na mesma posição.
— Propriedades ricas, decoradas, rebrilhando, para que os reis entrassem ali e admirassem, ajoelhassem e beijassem a nossa mão (Parece que foi um dos Papas).
— E os pés, também.
— Os pés, também.
— E você acha que aquilo construiu alguma coisa? Não é isso que o incomoda hoje?
— Foi por isso que me afastei de tudo.
— E você não está repetindo os mesmos enganos?
— Não. Eu, agora, busco uma verdade.
— Meu querido, aí está o seu engano. Tenha a coragem de afirmar. Que verdade? Fora do Cristo?
— A verdade, onde ela se encontra. Fé em Deus. Fora do Cristo.
— Não precisa mais de Jesus?
— Preciso de Deus.
— Isto significa, então, que você não quer mais o Cristo?
— Quem é o Cristo, senão uma figura? Você viu o Cristo?
— Eu vi. Você, também.
— É uma figura de retórica. Que quer dizer Cristo? Uma figura de retórica.
O doutrinador insiste na regressão, enquanto o Espírito resiste à ideia do levantamento das lembranças do passado distante que jazem nos porões da sua memória integral.
— Preciso voltar para casa... Quero ir para casa.
— Neste momento lhe fazemos um apelo, porque você é também o filho pródigo da parábola, que depois de muito errar, chegou de novo à casa do Pai. Venha conosco.
— Tenho um trabalho que deve sair, ficar em evidência. Trabalho do esclarecimento, da luz, da verdade.
— Escute! As suas agonias de hoje são por causa daqueles erros do passado que você continua a repetir. Que verdade? Você não pode falar em verdade nesse local em que vive, meu querido. Ali é o domínio da mentira, da falsidade, dos desenganos. Não por maldade, o que existe é ignorância espiritual ou, então, interesse.
— Precisamos atuar, você não quer colaborar?
— Vamos falar de algo que já lhe perguntei. Onde estava você no tempo de Jesus?
— No tempo de Jesus? Eu não estava lá. Eu estava no Egito.
— Que você fazia no Egito?
— Eu era um mago. (Hesita). Eu... eu... sabia da vinda d’Ele.
— E por que você não O aceita hoje? Você, a quem foi dada essa informação e que reconheceu nele essa figura, por que O nega hoje? Existe alguém acima d’Ele neste mundo nosso?
— Existe Deus.
— Sei. Mas digo em relação aos messias, aos mensageiros ... Existe outro igual a Ele? Podemos prescindir d’Ele? A doutrina d’Ele já está incorporada ao nosso coração? A doutrina do amor e do perdão...
— Doutrina!... Nós temos o conhecimento.
— Conhecimento, meu irmão, não é sabedoria. Conhecimento é desengano, se não estiver ligado ao sentimento de afeição, de compreensão, de caridade, de amor. Você sabe disso. O nosso Pedro dizia que “o amor cobre a multidão dos pecados”. E você, que é capaz de amar, por que não procura refazer o seu Espírito, buscar nas profundezas do seu ser aquelas coisas boas que tem, as lembranças agradáveis, os amores, aqueles gestos de caridade?
— Um túnel escuro... um túnel escuro...
É aqui a passagem para o passado. Quase sempre há uma espécie de “acidente geográfico”, se assim podemos nos expressar, a marcar os limites entre o território da memória consciente e os arquivos secretos: uma parede, uma barreira, um muro, um túnel...
— Vamos pelo túnel. Lá na frente você vai ver algo. Continue. Caminha. Vamos. Vem comigo.
— Está confusa minha cabeça. Está tudo cinzento, uma nuvem...
— Onde você está? Quem é você?
— Eu sou o poder, sou a força, sou a decisão.
— Você é também a perplexidade, a angústia.
— Estou sentado num trono. Tenho o poder da vida e da morte nas mãos.
— Você acha que Pedro também teve? Você foi um digno sucessor dele?
— Posso assinar qualquer sentença. Os reis temem a mim. Sempre temeram a mim.
— Mas você serviu ao Cristo?
— Cristo? Eu me servi do Cristo (Destaca bem a pronúncia da partícula). O Cristo era uma imagem muito fraca demais.
— Mas você não acha que Ele foi o Messias? Não é Ele o emissário do nosso Pai?
— Estou confuso.
— Por que, meu querido?
— Porque você me confundiu.
— Não, meu filho. Estou apenas mostrando o que está em você. Não estou inventando nada, não estou criando coisa alguma para você; estou mostrando a você o que está dentro do seu próprio Espírito.
— É tudo uma confusão, uma loucura. Eu misturo tudo...
Como o Espírito ainda não se fixou num ponto específico do seu passado, o tropel das memórias reprimidas, que subitamente se desencadeou nele, coloca-o no centro de um verdadeiro tumulto interior. Aos poucos começa a fixar-se num episódio específico e diz:
— Ouço cantos, vozes, gritos. Tudo ao mesmo tempo.
— É. Sofrimento, dores, lágrimas. Mas você não vê também aí os seus amores?
— Ouço... Há um poço escuro e gritos vêm de lá de dentro. Que é isso? Sou um homem bom. Nunca cometi uma crueldade. Estou mentindo. Nunca tive um trono, quis um trono. Foi um engano.
— Sei que é difícil, meu irmão, enfrentar a consciência, repassar os nossos erros, mas às vezes é preciso um momento desses de introspecção para que nos vejamos sob a nossa luz real, aquilo que realmente somos.
— É esse Cristo que não diz nada à minha mente. É um nome sem expressão.
— O Cristo é um nome sem expressão para você? Por que você então utilizou-se d’Ele para oprimir?
— Não consigo entender o que é isso. Quem sou eu? Estou perdido. Quem sou eu? Onde estou? O meu nome? Estou perdido. Que eu faço? Perdi minha identidade. Isso foi um truque qualquer. Quem sou eu? Não sou nada!...
Repete interminavelmente as mesmas perguntas, tentando reencontrar a identidade perdida e sua localização no tempo e no espaço. Atravessou as barreiras temporais e se debate, por algum tempo, numa total perplexidade, quase alienada.
— Você não está perdido, meu irmão. O Cristo não deixa nenhum de nós perdido. Somos ovelhas do seu rebanho e ele vai buscar um por um de nós. Ele nos permitiu que chegássemos até você para levar este recado de esperança, de consolo. Você também é um ser amado por nós. Estamos oferecendo-te uma oportunidade de voltar ao nosso convívio; não, meu querido, para usar o Evangelho como instrumento de poder e de opressão, mas para deixá-lo incorporar-se ao nosso ser. Você há pouco dizia “depois de dominado todo o Evangelho”. Não queremos dominá-lo, queremos traduzi-lo em ações, em atos de pureza, de amor e de confiança. A palavra do Cristo, as Epístolas do nosso Paulo, os Atos dos Apóstolos, a narrativa daquela epopeia de luz...
— Evangelho.. . Evangelho. Que é isso?
— Ainda não sabemos nem praticá-lo direito, como estamos pretendendo considerar superado o Cristo? Quem somos nós, meu irmão? Quem é você? Quem sou eu?
Refere-se, agora, com um pouco mais de coordenação, à existência no Egito, onde teria sido um profeta:
— Eu sabia... alguém me mandaria servir ao Evangelho.
— Você já teve essa oportunidade.
— Eu precisava ir para servir junto d’Aquele que eu predissera. Ia chegar o dia em que eu deveria ir e servir a Ele.
Como se observa, na sua remota encarnação no Egito, o Espírito manifestante profetizou a vinda do Cristo e lhe foi dito que ele próprio havia sido indicado para servir junto d’Ele mais tarde.
— Você não o fez àquela época porque cometeu um engano. É possível que tenha feito um daqueles pactos, a que você chama de acordo. O problema, meu querido, é que não é possível continuar cometendo o mesmo engano século após século.
— Eu fui... Vi uma cena estranha: três homens e uma bolsa de dinheiro para comprar a vida de um homem, de um louco.
— Você contribuiu com o dinheiro ou apenas previu, ou melhor, anteviu?
— Não. Eu contribuí. Eu era um dos três...
O doutrinador não entende bem e pergunta:
— Mas você não disse que estava no Egito?
— Antes.
A história, então, é que ele viu mediunicamente a cena que se desenrolaria séculos depois, da qual ele participava como uma das duas pessoas que com uma bolsa de dinheiro comprava de um terceiro a vida de alguém que ele chama de “louco”. Viu, pois, a trágica transação com Judas e ele era um dos que pagou pela vida do Cristo, com o dinheiro do Templo naturalmente.
— Ah! sim. Entendi agora. Houve uma existência em que você foi um mago e previu tudo. Depois você veio nascer no tempo d’Ele. É isso?
— É isso.
— Mas olha aqui, meu irmão. Isso não quer dizer que o Cristo tenha deixado de o amar, que ele o odeie ou que não proporcione novas oportunidades a você. Você terá novas oportunidades. A prova está em que Ele nos ajudou a chegar até você para levar este recado d’Ele para você.
— Foi horrível.
— Sei, meu querido. Sei que isso perturba a sua consciência. Quero que saiba, porém, que você não deixou de ser nosso amigo, nosso irmão, nem ovelha do seu rebanho. Ele nos pede que cheguemos novamente até você e lhe ofereça, em nome d’Ele, nova oportunidade.
— Mas Ele era um homem, não um Deus!
— Sabemos disso. Isso muda a mensagem que lhe trazemos? Muda o sentido dela? Não continua sendo uma mensagem de amor, de esperança? De fé?
— Vejo alguém que me diz que falhei.
— Pois é, meu irmão. Você falhou uma vez, falhou muitas vezes, mas não quer dizer isso que vai continuar falhando. Você tem diante de si todas as oportunidades de reabilitação.
— Voltei outra vez para servir dentro (da Igreja) e falhei.
— Pois é. E está tentando falhar outra vez? Tentando novamente induzir companheiros a se utilizarem do Evangelho para conquistar posições, popularidade e fama? É isso, meu querido, que você está tentando fazer. É isso.
— Sinto algo frio, gelado, dentro de mim, como se tivesse mergulhado... É tarde!
— Isso que você sente gelado, é o seu coração. Ele não se encontra totalmente gelado como você pensa. Porque além do carinho e do sentimento de afeição que você tem pelo nosso Ambrósio (Um Espírito tratado pelo grupo na semana anterior), há outros seres a quem você ama. Nunca houve um vulto feminino nas suas vidas?
— Tenho esta mulher que vejo toda envolta em luz, que me diz: “Vá. Você falhou outra vez.”
— Quem foi ela? Sua amiga, sua esposa, sua amada?
— Não sei. Está longe... Tenho medo de recordar.
O Espírito certamente lhe aponta o único roteiro possível rumo à nova tentativa: o da reencarnação que o ser comprometido tanto teme.
— Meu amigo — prossegue o doutrinador —, não tenha medo das decisões que precisa tomar. Este momento é importante para você.
— Vejo uma grade. Estou preso. Ninguém me ouve. Me tira daqui! É uma grade toda de ouro. Você me prendeu dentro dela! Ela está rodando. Estou dando um mergulho. Minha cabeça... Que coisa horrível!
Aí está o trágico perfil de uma agonia multissecular. O infeliz companheiro previu, no Egito antigo, a vinda do Cristo e foi avisado de que também estaria lá para servir junto do Emissário Divino. Chegado o tempo, renasceu e, envolvendo-se nas tramas político-religiosas da época, galgou posições de destaque no culto então dominante, pois trazia consigo uma sede incontrolável de poder e glória. Participou ativamente das negociações que resultaram na compra da traição. Foi um dos sacerdotes que entregaram ao pobre irmão Judas a bolsa que continha o preço da infâmia.
Depois disso, quando novas oportunidades se ofereciam, em renovadas existências, servia-se do Cristo em vez de servir a Ele. A figura de Jesus sempre esteve associada, no seu pobre e atormentado Espírito, ao terrível episódio da compra de uma vida e que lhe foi mostrado por antecipação desde o Egito. Os sucessivos fracassos consolidaram a frustração em vez de eliminar os seus terrores.
Compreendeu, tarde demais, a grandeza espiritual d’Aquele cuja vida adquirira por trinta dinheiros. O recurso era a fuga de si mesmo e de tudo. Para isso, engendrou a doutrina pessoal de que tendo já “dominado” — ou seja, aprendido tudo quanto havia a aprender nos ensinamentos de Jesus, e havendo pregado esses ensinamentos do alto das mais elevadas tribunas ditas cristãs, podia considerar o Cristo mera figura de retórica e que Sua sabedoria ultrapassada nada mais tinha a dar-lhe. “Evoluíra” para a posição “superior” de agora. Dirigia-se diretamente a Deus e seguia “em busca da Verdade”.
Nos meios em que atuava, porém, entre várias organizações terrenas, continuava a usar — sempre no interesse de suas deformações pessoais — o nome do Cristo, inspirando médiuns, oradores, psicógrafos. Por trás de tudo isso, a persistente e insaciável sede de poder, a técnica de corromper para conquistar, e, acima de tudo, como objeto final, a alienação total do Cristo, porque à figura excelsa do Mestre estava ligado o mais lamentável episódio de toda a sua trajetória espiritual. Era essa lembrança tenebrosa que ele bloqueara do consciente, porque, esquecendo seu remorso maior, podia pelo menos fingir que vivia em paz. Era esse o núcleo que fora preciso desvelar, mesmo que fosse, como foi, à custa de verdadeiro abalo sísmico interior.
Outras memórias terríveis guardava ele nos porões do ser... “Tenho medo de recordar”, disse, ao contemplar a longínqua e luminosa figura feminina que o segue amorosamente. Não se sentia com forças para mergulhar naquele outro poço fundo, escuro e cheio de gritos de desespero. Outros fantasmas tenebrosos o esperavam lá e ele temia.
Virá, a seguir, a longa série de encarnações dolorosas, novos testes, novas oportunidades e, talvez, novos fracassos, mas a vitória final estará mais adiante à sua espera, certamente junto daquela cujo vulto luminoso ele mal pode contemplar à distância.
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