(o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)
Sem nenhum preâmbulo, tomamos o fio do diálogo com este companheiro no exato momento em que ele, já magnetizado e depois de reagir bravamente à indução, mergulha nas memórias de uma remota existência. É ele quem começa a falar:
— Está quente hoje. Muito calor...
— Onde você está?
— Estou na minha casa. Atendo aos meus fregueses. Sou um mercador. Vendo potes, óleos e vinhos.
— Você é muito rico, então?
— Sou. Vendo, também, tapetes, que mando vir da Pérsia. Peles, vendo peles. Moro aqui na Samaria.
— Você é samaritano, judeu ortodoxo ou de outra nacionalidade?
— Não ligo para essas coisas. Meu pai veio de longe.
— Você já havia nascido ou nasceu aí?
— Nasci aqui.
— O que aconteceu aí? Conta, por favor.
— Vendo vinhos, óleos, sedas, peles. . .
— Sua casa fica na beira da estrada? E você via todos os que passavam por ali?
— É.
— E em determinado dia passou uma pessoa muito importante para a sua vida, para o seu espírito. Que foi que aconteceu naquele dia? Como foi essa história?
— Não há histórias. Só escuto falar tanta coisa... E falar e falar...
— Um momento, também O viu.
— Sim. E daí?
— E o que aconteceu quando você O viu?
— Não lhe dei importância nenhuma. Eu não O vi. (Pausa). Sálvia... minha... Ela é muito jovem. Falam, falam e ela ouve o que essas mulheres falam. Elas se reúnem e falam. Deviam estar mais ocupadas. Não gosto que ela me ajude, porque ela é muito bela e, às vezes, descobre o rosto. Não gosto que a vejam.
Foi aquela seda... que veio de longe. Eu a presenteei a ela. Tinha uma substância qualquer, algo que a cegou. Ela deixou de ver.
— Não pode ser isso. Você quer dizer que você, um comerciante experimentado, deu à sua esposa um tecido que a cegou?
—
Só
pode ter sido isso. Que mais a teria cegado? Um dia ela apareceu cega. Daí, ela
ouviu aquelas histórias. (Acerca das curas de Jesus). Eu a proibi. Busquei os
médicos de Jerusalém, levei-a ao Templo. Deram banhos e óleos e nada adiantou.
Um dia em que pernoitávamos em Jerusalém, ela, como sempre, se associou com
algumas mulheres que e conheciam e, contra as minhas ordens, (diz isso com
ênfase), foi atrás de uma lenda e de um homem que podia curar.
Nenhum homem cura... Ela foi lá. (O relato sai aos pedaços, penosamente, como se ele ainda relutasse em aceitar os fatos e tivesse vergonha em reproduzi-los). Naturalmente os remédios para os olhos... Tudo isso, você sabe, pode acontecer depois, não é? Efeito remoto. Ela voltou boa, mas cismou que foi o homem que a curou.
Eu não queria que ela falasse naquilo porque estávamos hospedados na casa de um mercador amigo, muito rico e que, além de mercador, fornecia ao Templo e a pessoas do Sinédrio, e eu também servia a pessoas do Sinédrio. Voltamos para a Samaria, mas ela nunca mais foi a mesma. Vivia pelos cantos, os olhos perdidos no espaço, como se estivesse tendo visões. E toda pessoa que chegava, todo viajante, ela procurava saber, pedia notícias. E isso me incomodava.
— E Ele passou lá um dia?
— Ele passou. Eu não estava porque tinha ido buscar uma partida de sedas. Acho que ela se foi...
— Nunca mais você a viu? Ela foi embora?
— Ela perdeu-se naquela multidão que O acompanhava. Eu a vi, sim, mais tarde. Depois que tudo havia passado. (Estes companheiros evitam menção direta à crucificação).
— No mundo espiritual, portanto, como Espíritos, você e ela?
— Não. Eu a vi lá, em Jerusalém, depois que tudo tinha passado e que o criminoso havia sido justamente justiçado.
— E o que foi que aconteceu? Você a levou para casa?
— Ela confessou-se cristã. Ela confessou-se.
— E você, o que fez?
— Eu queria... eu deveria tê-la chicoteado, mas eu a amava muito. Então eu a defendi, dizendo que ela estava louca. E acho que estava mesmo louca. Aqueles olhos ficaram vendo visões. Abandonou as sedas. Eu a levei de volta para casa e a trancava num quarto, mas quando eu não estava ela escapulia, para distribuir as nossas coisas, para levar alimentos a míseros leprosos.
E um dia, eu... (Longa hesitação) Um dia eu... confrontei-a. Segurei-a pelos cabelos, bati-lhe com a cabeça na parede, chicoteei-a e, como ela nada dizia — pois acho que já nem mais me amava — nem os deveres de esposa ela os queria cumprir... Só falava naquele Rabi, naquela visão, naquele Reino estranho a mim. E dizia que os miseráveis, os pobres, os leprosos eram seus irmãos.
— Mas o que aconteceu então? Você disse que a pegou pelos cabelos... Ela morreu?
— Não sei, porque depois de tudo eu a arrastei pela porta e a joguei do lado de fora. Arrastei-a por um pedaço da estrada e larguei-a, para que os irmãos dela fossem tomar conta.
— E você nunca mais soube dela?
— Não quis mais saber.
— Mas, meu querido, se entendi bem, é uma história ao mesmo tempo muito triste, muito dolorosa, mas que você, meditando bem, encontra nela muitas belezas também, porque você viu...
— Só loucuras... só loucuras!
— Não. Escute.
— Como você pode enlouquecer de amor por um homem que morreu numa cruz? Que nem sabia vestir-se bem?
— Sim, mas Ele não restituiu a visão a ela? Ou você acha que foram os sacerdotes com os seus bálsamos e seus óleos?
— Nunca quis saber.
— Não quer saber, ainda, agora?
— Que diferença faz?
— Muita.
— Já faz tanto tempo! E nunca tive o filho que queria, para continuar com a nossa tradição.
— Mas, de tudo isso o culpado é o Cristo?
— Ele roubou-me o filho, roubou-me a felicidade, roubou-me os sonhos da juventude. Roubou-me tudo. Fiquei um homem rico, cada vez mais rico e cada vez mais só. Cada vez mais só... Isso me dava uma agonia que me matava.
— Sim, mas aquela vida também terminou um dia e você foi para o mundo espiritual. Como foi que terminou aquela existência? Você estava muito velho?
— Não estava muito velho. Você sabe, aquela seita espalhou-se como uma praga rasteira, como um fungo terrível. Houve uma época em que todos eram perseguidos, e eu procurava identificar em minha tenda aqueles que eram da seita. Eu os denunciava, para vingar-me. Nunca mais a vi. Ela era tudo para mim. Até hoje não sei se a matei ou não. Eu me sinto um assassino.
— Agora vamos voltar aqui, ao presente, trazendo estas memórias, mas principalmente, meu querido, a lembrança daquele Espírito a quem você amou e, portanto, continua amando. Aquele Espírito que sobreviveu e lutou por um ideal, que aceitou as suas punições e as dores pelo amor, não apenas de um ser, mas de um novo ideal de vida que ela soube compreender e que você tenazmente recusou.
Os séculos se passaram, ela caminhou e você não quis segui-la. Não é porque ela foi roubada de você; é porque você não quis ir com ela. Ela não se desinteressou de você. Pelo contrário, através desse tempo todo, tem estado em busca do seu Espírito e você sempre a fugir dela.
— Você me está causando uma coisa estranha! Sim, é verdade, é verdade. Ela veio ajudar-me. Tão bela e tão pura. Mas eu continuava muito preso ao dinheiro. Tinha mágoa por causa do abandono. Sou um homem muito infeliz. Fui muito infeliz.
— Mas, meu querido, não é infeliz aquele que tem o amor tão puro de um ser que desde a primeira hora dedicou-se ao serviço do próximo na tarefa de divulgar a mensagem do Cristo. Ela certamente está à sua espera novamente. Por favor, não a decepcione outra vez. Fique conosco.
Não te podemos prometer o impossível, mas talvez ela tenha condições de estar com você no mundo espiritual, onde vocês possam ter um reencontro e você possa compreendê-la de outra maneira. Pelo fato de ela amar o Cristo não deixou de amar você. Tanto é que voltou em outra vida para tentar recuperar o seu Espírito.
— Rosa Malena não era minha esposa. Era irmã... Eu a repudiei porque era piedosa demais. Era rica e bela, mas vivia metida com os pobres sujos e queria que eu a ajudasse. E eu a expulsei de casa. Eu tinha um gênio terrível.
— Escute, meu querido. Isto agora são memórias que você precisa enfrentar para aceitar essa realidade do amor, da qual você foge. Não vamos exigir de você uma aceitação total, súbita e imediata de tudo aquilo que o Cristo pregou; você tem, ainda, um longo caminho de aceitação a percorrer.
— Por duas vezes eu a expulsei de minha casa...
— Dê uma oportunidade ao seu Espírito e dê também uma oportunidade a este ser tão dedicado a você, tão puro, tão amoroso, de o ajudar como irmã, como companheira, como amiga... Está de acordo? Você não gostaria de estar com ela novamente?
— Como? se a expulsei duas vezes...
— Mas ela não o odeia por isso. Ela tentará outra vez e outra vez, porque aquele mesmo Cristo, ao qual tão bem compreendeu nos primeiros tempos, nos ensinou a perdoar não apenas sete vezes, mas setenta vezes sete. Aceite o perdão que ela lhe oferece e vá ao encontro dela. Vamos ajudá-lo.
— Mas se ela era humana, por que não queria as alegrias e os prazeres humanos?
— Meu querido, as alegrias e os prazeres humanos não são incompatíveis com o amor a Deus e aos outros seres. Podemos, enquanto estamos encarnados, levar uma vida perfeitamente normal e servir ao próximo e procurar compreender os nossos problemas e a amar o semelhante, que somos também um deles. Está de acordo? Você fica conosco, então?
— Depois que você me reduziu a isto, para onde eu irei?
— Não é nossa intenção humilhar nem trazer-lhe dores inúteis. Era preciso, porém, que você desse este mergulho no passado para entender tudo isso de um outro ponto de vista, num momento de lucidez, de calma...
— Entender o quê? O Cristo continua golpeando-me.
— Não, meu caro. Ele está à sua espera desde aquela época. Você é que não quis segui-lo. A sua amada, a sua Sálvia, O seguiu e tomou-se muito feliz. Por que você não quer ser feliz com ela? Não será isso orgulho seu? Você não pode descer do seu pedestal? Por que você não pode descer?
— Mas o Cristo é inatingível. É complexo.
— Não é, não. Como é que ela O aceitou?
— Eu não O compreendo.
— É porque você quer chegar a Ele pela inteligência, pelo intelecto, pela razão fria; ela chegou mais depressa do que você. Como é que ela O entendeu? Ela é mais brilhante do que você? Não. É mais amorosa. Você não percebe que o caminho do amor é mais curto? Por que você perdeu esse tempo, fez tantas voltas e deixou passar tantos séculos?
— Ela submeteu-se, deixou-se dominar.
— Não parece, não... Um ser que tem essa lucidez, essa calma, esse equilíbrio, está dominado? Está mais liberta do que você, meu querido. Ela é que está liberta. Você está preso aos seus rancores, às suas decepções, ao seu orgulho.
— Eu já tive vidas religiosas.
— Mas não amou o Cristo. Não é preciso que você agora se transforme perfeito, mas comece a reconhecer as suas faltas, para que possa libertar-se. Temos que interromper aqui a nossa conversa. Você, por favor, fica conosco então. Se for possível, iremos depois ao mundo espiritual para estar com você e colocar em repouso, pacificar um pouco o seu Espírito, para que você possa entender tudo isso. Está bem?
— Sim.
— Você me perdoa, sim? Não leve a mal algumas frases mais rudes que trocamos de início, porque...
— Sinto-me tão só...
— Você não está só. Está conosco. Aqueles mesmos companheiros que você, na época, não entendeu, muitos dos quais você talvez tenha até denunciado, como disse, são aqueles que querem ajudá-lo hoje.
— Sempre me senti tão só. Tive tantas mulheres e sempre me senti tão só... Falta-me algo. Falta-me ela...
— É isso mesmo. Falta o amor que você recusou, mas que está ao alcance da sua mão.
O Espírito é retirado com uma palavra de carinho e de esperança e uma solicitação para que se dirija, em pensamento, à sua amada. Essa história é a de mais um irmão desorientado que não conseguiu aceitar o Cristo, nem mesmo depois da cura da mulher que ele amava. Ao contrário, fixou nEle o seu rancor e cristalizou-se na incompreensão, enquanto ela seguiu a rota evolutiva, servindo à causa do amor ao próximo. Esse amor abrangente e transcendente incluía também o rico mercador da Samaria. Ele poderia ter seguido o caminho com ela, rumo às paragens da luz.
Preferiu bater-lhe com a cabeça nas paredes e arrastá-la para a estrada, onde a abandonou. Voltou para as suas riquezas, seu orgulho, seus preconceitos e sua solidão. Para ele, o Cristo era o culpado de toda aquela desgraça...
Séculos depois, quando ela retomou à carne, na condição de irmã, novamente o convidou para a sublime tarefa da caridade e ele, novamente, a expulsou de casa e voltou-se para as suas riquezas, seu orgulho, seus preconceitos e sua solidão. Finalmente, viera encontrar atenção e carinho, calor humano e acolhimento justamente entre aqueles míseros seguidores do Cristo que ele combateu tenazmente durante quase dois mil anos...