Ensinamentos Esotericos - O MASSACRE – Hermínio Miranda


 (o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)

Este é um daqueles destemidos Espíritos, dotados de muitos talentos e experiência, infortunadamente, a serviço do mal. Tinha também seu código de honra e de cavalheirismo. Suas palavras iniciais foram, porém, de ameaça, pois disse trazer um remédio para os nossos males, extinguindo, como pretendia, o grupo mediúnico. Sabia muito bem das pressões terríveis que sofríamos em consequência do nosso atrevimento de pigmeus, ao tentar interferir nos seus planos e pôr em xeque a sua organização.

Pouco depois, no entanto, confessa que, ao lamentar-nos, lamenta-se também, porque está vivendo o desespero da inação e a humilhação da impotência. Dirigia e controlava tudo. Comandava mentes de seres encarnados e desencarnados como um adestrado e firme cavaleiro domina seu cavalo. Ao simples impulso do seu menor desejo, fazia vibrar os cérebros que tinha sob seu poder. Já não sentia mais a mesma firmeza. As mãos tremiam e vacilavam e a sua Instituição entrara em rápida desagregação.

Disse-nos que não podia acreditar no que via, vagando pelos corredores abandonados. Resolvera, portanto, deixar por algum tempo a sua elevada posição de comando, para ir pessoalmente “inspecionar o trabalho de campo”, ou seja, o ambiente e as condições em que viviam aqueles míseros componentes de um grupinho insolente que ousava perturbar o andamento do seu trabalho. Estava, portanto, em desespero.

Perdas importantes haviam ocorrido na sua Organização. A da semana anterior fora irremediável, pois o Grupo conseguira recolher importante personagem que eles consideravam uma espécie de “guia espiritual” da Organização, se é que a expressão é adequada nesse contexto.

O nosso visitante daquela noite viera “para o campo” algo preocupado, mostrava-se agora literalmente aturdido, após a “inspeção”. Impressionara-o, sobremaneira, a resistência passiva dos componentes da nossa modestíssima equipe de trabalho, o nosso destemor, que ele só podia explicar atribuindo-nos alta dosagem de irresponsabilidade ou de desconhecimento da seriedade da situação em que nos metêramos.

— Quem é você? - perguntou ele ao doutrinador. Que monstro de resistência é você? Em que alicerces vocês se apoiam?

Quanto a ele, acabara de verificar que toda a sua obra, que lhe parecia tão prodigiosa, eram meros castelos de areia e esta areia, no momento, lhe escapava velozmente por entre os dedos. Que fazer de nós, àquela altura? Todas as ofertas possíveis já nos haviam sido feitas. Recusáramos tudo. Estava, pois, confuso, desconcertado, desarmado.

— Vocês me ganharam — disse ele — com uma simples excursão.

Pouco adiante, com a sua palavra precisa, a serviço de uma ágil e brilhante inteligência, ele nos disse:

— Conheci almas com muito menos problemas e dificuldades do que vocês e que aceitaram tudo. Referia-se aos pactos sinistros que faziam com encarnados e desencarnados para obter apoio, colaboração ou, até mesmo, a neutralidade. Era tudo uma troca vil de interesses mesquinhos. Na sua longa experiência de negociar adesões, confessou-nos que recusara muito pouca gente pelo fato de trazer ainda no espírito restos de decência, de honestidade, de bondade — fatores sempre indesejáveis para os seus planos. Eram todos venais, interesseiros e inescrupulosos.

Ante a franqueza dura e leal dessa exposição de misérias, o doutrinador ofereceu-lhe uma explicação do mistério que ele não conseguiu entender, a única explicação possível:

— Meu caro, é simples: para nós, o Cristo não está à venda.

E agora, que perdera aquele que, no seu dizer, fora “a alma do seu trabalho”, ele sentia-se a caminhar por uma prancha estreita ao fim da qual o esperava o mar desconhecido, onde ele, um condenado, tinha de atirar-se sem barco para navegar. Estivera pessoalmente com alguns dos seus companheiros no recinto a que haviam sido provisoriamente recolhidos pelos nossos Benfeitores Espirituais, a fim de receberem um primeiro tratamento de emergência e repousarem por breve tempo. Ficara perplexo com o que ouvira e com as atitudes deles, inclusive do seu precioso assessor.

Aproximara-se, a seguir, de nós próprios, os encarnados. Visava principalmente o doutrinador e a médium. Causara-lhe tremendo impacto o que chamou de passividade e resignação desta última. Ele viera para destruí-la, a fim de, com isso, neutralizar o trabalho do Grupo. Criou, neste ponto, uma bela imagem para figurar o que lhe ia na mente. Imaginara encontrar uma parede de aço, a qual ele golpearia rudemente, num ímpeto arrasador, com toda a força de seu punho cerrado. E viu que o murro atravessaria a parede como se ali nada houvesse. E mais: o impulso do soco, levaria também a ele e lhe causaria um choque que o desequilibraria.

Ante a sua belicosa atitude, não vira nem o esboço de uma reação, nem o fugidio sinal de um temor. Como explicar aquela serenidade, aquela entrega total? Seria o mesmo que dar um murro no vazio! E fora como se houvesse dado, porque levara o choque. Era — explicou o doutrinador — a resistência de quem cede porque ama, porque não teme; de quem confia n’Aquele que ilumina os nossos caminhos.

Ele desistira, finalmente, da agressão planejada. Eram manipuladores de mentes e não pessoas dadas à violência. Para as tarefas desta natureza viam-se obrigados a recorrer a elementos mais rudes, como quem, no plano físico, contrata um pistoleiro profissional. Além disso — e esta nos pareceu a razão principal do seu recuo — permanecera nele um resquício de hombridade. Seu código de honra não lhe permitiria agredir um ser entregue àquela passividade e resignação, como que indefeso e, ainda mais, uma mulher (a médium). Aquele destemor o deixara perplexo.

Vivia horas de fantasmagórico silêncio interior, esvaziara-se a sua mente, não tinha mais planos, nem ideias, nem o que fazer, senão ouvir o eco de seus passos na solidão. E, de repente, aos gritos e em pranto, desabaram as últimas fortificações do seu valoroso espírito:

— Fala-me de Jesus! Fala você que é um homem, para ver se eu entendo! Ele me falou, (refere-se a um de nossos Amigos Espirituais) mas me pareceu um anjo falando de outro. Não entendo a sua linguagem. Onde é o caminho? E eu falei de Jesus pela boca de tantos! Quem é este ser misterioso que me dá liberdade, mas me tolhe ao mesmo tempo, porque me domina? Não posso livrar-me d’Ele! Muitos estão vazios como eu e não sabem... Ainda não sabem. Tenho a consciência em fogo!

Confessa, nessa torrente, que não tem como fazer estancar, que frequentemente procura pessoas drogadas para, unido a elas, poder esquecer um pouco as suas angústias, para ter momentos fugazes de euforia artificial. Diz conhecer do Cristo apenas o que estudou, leu e aprendeu nos documentos históricos; não O conhece pessoalmente. O doutrinador suspeita de que isso não seja verdadeiro, seja porque ele não queira dizer, seja porque, naquele momento, O ignore deliberadamente, em vista de ter varrido para os porões secretos do inconsciente lembranças aterradoras de um passado que rejeita. Esta versão parece a mais provável — e é a verdadeira, como veremos.

Nesse ponto, começa, irresistível, a regressão de memória. Sigamos, daqui em diante, a transcrição do diálogo, tal como está nas fitas.

— Estou com a cabeça cheia de visões... Visões tenebrosas... Visões terríveis que me atormentam. São gritos, são dores. Gritos frenéticos... Desespero...

— E qual é a sua atuação nesse quadro?

— Eu me sinto, às vezes, como um caçador que surpreendesse um bando de aves inocentes e as abatesse todas de um só golpe, sacrificando-as para nada, porque nem para Ele mesmo elas serviam... (Refere-se ao Cristo). Uma matança que a ninguém aproveitou.

— É certo. Aqueles seres continuam a espalhar por aí seus gritos, seus lamentos. Quando a dor é para regenerar temos que aceitá-la, mas e a dor que nos aprofunda mais na dor?

O Espírito chora e ouve. O doutrinador prossegue:

— Mas você não está aqui, por favor, em confissão, nem nós temos autoridade para submeter você a nenhum questionário, ouviu, meu querido? A nossa ideia, o nosso propósito aqui é apenas o de proporcionar o apoio espiritual, o carinho, o calor humano de que você precisa para que você próprio encontre o seu caminho, porque só damos valor àquelas coisas que nós mesmos suscitamos. Aqui não se impõe nada a ninguém, muito menos a um Espírito da sua envergadura. Está de acordo?

Ele tem um pequeno riso nervoso e diz:

— Espírito da minha envergadura!... Quão pouco você conhece das pessoas...

— Não, meu filho. Estou sendo sincero. Sei que você errou, porque você mesmo reconhece. Não é preciso eu dizer. E errou gravemente. Cometeu enganos seríssimos, mas a profundidade e a gravidade do seu erro decorrem, em grande parte, dos recursos de que você dispõe. Porque você utilizou mal os talentos concedidos pela misericórdia divina ao longo de todas essas vidas, mas é preciso lembrar que a experiência, o conhecimento, esses recursos todos ficaram no seu espírito. com esses recursos você pode reconstruir a sua vida e as daqueles a quem você prejudicou. É verdade ou não é, isso? Então, quando digo que você é um espírito que tem envergadura estou sendo sincero e você sabe que isto é verdadeiro. Mas, pelo amor de Deus, não use esses talentos para corromper novamente, porque o principal corrompido é o seu próprio espírito. Quem mais sofre, quem mais atrasa na sua evolução é você mesmo. Agora, você tem que fazer o trabalho regeneração das suas cercas caídas e, ainda, ir em socorro daqueles a quem você induziu ao erro. Mas tudo isso, meu querido, pode ser feito e vai ser feito, porque a despeito da sua incompreensão, o Cristo não deixou de o amar, de o compreender, nem de o aceitar. Não precisamos dizer isto porque você o sabe. Esteja certo, porém, de que Ele não está interessado em puni-lo, em magoá-lo, em fazê-lo sofrer. Você já tem sofrimento bastante.

— Eu não entendo... Não entendo por que tantos se sacrificaram, por que tantos tiveram que ser abatidos, para que Ele vivesse, sobrevivesse, para que a Sua palavra...

— Mas quem foi abatido? Em Roma... naquelas matanças todas?

— Não apenas lá, muito antes disso.

— Pelo mundo todo, na Inquisição, na Idade Média...

— Parece-me, às vezes, que Ele sempre foi maldito.

— É isso que lhe parece?

— Porque o seu próprio nascimento foi marcado pela mancha do sangue dos inocentes sacrificados. Quantos inocentes foram sacrificados!

— Você quer transferir a culpa de homens que falharam para o Cristo que veio redimir a todos nós?

— Mas quem vem para redimir, trazer uma mensagem de paz, rega o seu caminho de sangue?

— Ele regou o caminho de sangue? Como é isso?

— Deixou um rastro atrás. Um rastro de sangue.

— Ele deixou? Não. Por que deixaram esse rastro de sangue atrás d’Ele? Ele não derramou sangue de ninguém. Derramou o d’Ele próprio.

— Eu fui triplamente golpeado.

— Como assim? Explique isso. Deixe sair tudo.

— Desde o seu nascimento maldito. Ó que terror! Por que as cenas me aparecem com tanta clareza? Por que a gente quer se livrar do passado? Por que essas imagens ficam como uma tortura dentro de você? E você fica repetindo, repetindo  as mesmas coisas, vendo as mesmas cenas, sofrendo eternamente uma tortura indizível!

— Não é eternamente. É até quando você quiser. Daqui para diante você pode mudar todo esse quadro, mas se está ainda raciocinando no sentido de que o Cristo é que espalhou a desgraça, a miséria, o sangue... É claro que, se a um combate em que todos se estão massacrando vai um mensageiro da paz, ele também é massacrado. Mas é ele o culpado do combate? Pois se ele foi lá para apaziguar os ânimos!

— Você é advogado d’Ele, não é? Você O defende.

— Não. Ele não precisa de advogado. Ele não precisa da minha defesa. Estou defendendo você de você mesmo. Você já calculou quantos processos de dor você já examinou? Processos de dor e de angústia às custas do Nazareno, desde o Seu nascimento?

— Estou bem consciente disso. Muitas vidas passei a fazer isso.

— Inocentes foram mortos, massacrados. Por que? Por que?

— Por causa d’Ele? Quem mandou matar os inocentes?

— Parece que em todas as vidas eu nascia com um sinal maléfico qualquer, uma maldição...

— Não, não creio nisso.

— ... uma maldição para que as coisas acontecessem.

— Não creio e você também não crê, porque você sabe muito bem que existe a lei de causa e efeito. Este universo é todo causal. Vamos voltar à nossa filosofia elementar. (O espirito é muito versado em filosofia). Se você nasceu com as matrizes da dor é porque antes as criou. Não é verdade?

— Dor e culpa. E incerteza. E isto tudo!

— Mas, voltemos um pouco. Você insiste muito na matança dos inocentes. Vamos ver. Por que razão aquilo? Por que foi dada a ordem?

— Ele... sempre Ele. Por que não escolheu outra cidade? Por que não escolheu outro povo? Por que tinha de ser o povo amaldiçoado pela Sua presença?

— Não. O povo não foi amaldiçoado. Ele deu àquele povo o privilégio, a satisfação e a honra de ter nascido ali. Vocês é que não o aceitaram. Por que? Por que tiveram que marcar o nascimento d’Ele com um massacre?

— Ah! eu não posso lembrar-me! Não posso lembrar.

— O seu papel nisso foi muito importante?

— Sim, claro. Fui uma das vítimas. Tive meu próprio lar golpeado.

— Perdeu um filho?

Longa pausa e depois:

— É... mas isto não seria nada. É uma compulsão que me obriga a falar.

— É bom que você fale. Tenha confiança em nós. Não vamos desrespeitar você por causa disso.

A história, afinal, em torno da qual ele vem fazendo voltas intermináveis, começa a desenrolar-se.

— Eu era jovem e estava em Palácio (de Herodes). Tinha uma jovem esposa.

— Você teve alguma influência na expedição dessa ordem? Na elaboração desse plano?

— Infeliz de mim!

— Você não contava que ela atingisse seu próprio lar. Quer dizer que falhou um mecanismo qualquer de proteção que você havia armado. É isso? Não sei se me estou antecipando.

— Fomos quatro... Não, fomos doze os que discutimos, os que aprovamos, os que arquitetamos.

— Sim. Tivemos aqui, há algum tempo, um dos seus companheiros.

— E naquela maldita tarde, de retorno ao lar, para as alegrias que me deviam esperar... a jovem esposa, o filho primogênito, que crescia forte, belo. O que encontro eu? Hein?! O que eu encontro? Uma pobre ave abatida e uma mãe enlouquecida, tentando colar aquela cabeça naquele pescoço. Você pode imaginar o que é isso? Tentando juntar aquele corpo, envolvendo-o em panos. Jamais esquecerei os seus olhos enlouquecidos. Não havia uma sombra de dor. Era só um estupor, uma incompreensão. E eu tive que vê-la tomar nos braços aqueles panos enrolados e colocá-lo no berço. Tive que assistir a isso.

— O que falhou, então? Você estaria em casa naquela hora?

— Não sei o que falhou.

— Como é que você tinha planejado para que seu filho escapasse?

— Minha casa devia ser respeitada. Não sei o que falhou.

— Você notou que estranha coincidência: que foram doze a resolver esse massacre e que doze seriam depois os mensageiros da paz?

O Espírito tem violento tremor e prossegue:

— ... Tentando colar aquela cabeça! Quantas vezes tenho visto essa cena... Quantas vezes! Isso me tem enlouquecido.

— Meu querido, você me disse que foram três situações. Que outras houve? Continue, por favor. Ponha tudo para fora.

— Aí, meu amigo, fui golpeado duas vezes, na mulher e no filho. Ela enlouqueceu de dor.

— E você continua achando que foi o Cristo o responsável por isso?

— Depois que a separamos da criança, ela parecia outra criança, a embalar panos nos braços, dia e noite, dia e noite...

Chora em altos brados:

— Dia e noite, meu Deus! Agora me diga se eu posso entender esse Cristo que golpeia assim um coração.

— Quer dizer, então, que foi Ele quem golpeou? Ele é que mandou matar o seu filho?

— Ele e sua maldita seita... Eu vim, enfim, encontrá-lo mais tarde. Muito mais tarde. Não a Ele, mas à sua maldita seita! Em Roma. Que mais eu poderia ficar fazendo lá? (Na Palestina). Voltei para meus pais, com a esposa louca.

— Você era, então, cidadão romano?

— Eu era. (Pausa) Fomos para Roma. A esposa sempre louca, mas feliz na sua loucura, porque não aceitava a realidade. E resolvemos adotar um pequenino, para dar-lhe de novo o seu filho.

— Era um menino?

— Sim. E esse, depois, mais tarde, meu amigo... (O esboço de um triste sorriso) Ironia do destino...

—Tornou-se cristão? É isso?

— É. (Longa pausa e, depois, deliberadamente) E eu mesmo o matei!

— E novamente o Cristo foi o culpado...

— Estou cansado... Estou muito cansado. Eu o amei muito. Fiz dele meu filho.

— Até que idade ele viveu?

— Até a idade em que um jovem pode decidir por si mesmo o que fazer.

— Escute: isto tem muito tempo. Portanto, você teve oportunidade, através de todos esses séculos, de encontrá-los em outras vidas.

— Acho que vivi esses séculos todos procurando o Cristo para degolá-lo. Sangue por sangue. E enlouquecer a sua mãe.

— Mas, e o seu filho... os seus filhos, aqueles dois? E a esposa? Você nunca mais os encontrou? Em nenhuma dessas outras vidas subsequentes?

— Não sei... Acho que não.

— Nunca teve notícias deles? Nem da esposa, nem dos dois filhos?

— Não sei... Tenho medo de lembrar-me disto. Eu participei de outra matança, procurando encontrar um cristão rebelde...

— Como é que foi isso?

— Ah! você sabe... Muito tempo depois, na França (seria a matança dos Huguenotes, no século XVI?).

— E conseguiu seus propósitos? Continuou matando, não é?

— Acho que Ele sempre me escapou...

— Ele quem?

— O Cristo. Continuou a acumular culpas sobre minha cabeça.

— Ah! sim. Então a responsabilidade toda é d’Ele, não é? Todos os seus crimes, as pessoas que você matou...

— Sim, mas, às vezes penso que Ele não deve ser isso.

— Às vezes você acha isso...

— Sim, porque... Ou então todos estão loucos, porque quantos se deixam matar, se deixaram e ainda se deixam. Não se revoltam. Por que não lutar para viver também, em vez de se deixarem matar?

— Mas, o que é viver? O Espírito vive sempre.

— Qual o mistério? (Pensa naqueles que entregam suas vidas pelo Cristo).

Longa pausa. Em seguida:

— Nestes últimos tempos parece que tenho ouvido a sua voz. Como se ela me chamasse de longe. Como se o tempo não tivesse passado. Ainda ouço o seu canto a embalar nosso filho.

— Como é que ela se chamava?

— Para que aumentar a dor? A lembrança vibra como uma punhalada em meu coração.

— Pois é, meu querido. Você até agora ainda não assumiu a responsabilidade da sua falta. Por isso ela continua a doer. Sem assumir essa responsabilidade você não pode corrigi-la. Você deve perante a lei do Nosso Pai. Você cometeu faltas. Todos nós cometemos faltas assim graves. Mas chega um dia em que nos sentimos cansados, como você diz. O cansaço não é de agora e não é físico. É um cansaço de sofrer, da desesperança, da dor que não tem fim. É preciso que você agora enfrente a dor que resgata, a dor que libera... Não é verdade?

— E agora fui apanhado nas malhas desta rede.

— Não. Você não foi apanhado. Você continua livre de seguir o seu caminho. Você pode continuar a fazer as suas loucuras. Agora, a minha opinião, como irmão e companheiro, é a de que não é isso que lhe convém.

— Como mergulhar nesse mar se não consigo ver o fundo? (Pensa na terrível dificuldade de resgatar tantos e tão graves compromissos).

— Sim, você não consegue ver, mas há quem consiga ver para você e vai ajudá-lo. Vamos orar, ou não?

— Sim. Ore, ore à vontade.

O doutrinador ora. O Espírito retoma a narrativa.

— Há muito tempo eu não chorava. Você tirou-me tudo! Por favor, não me deixe ir tão vazio. Dê-me alguma coisa. (Refere-se à interrupção da tarefa que vinha realizando nas sombras e da qual conseguimos afastá-lo).

— Você diz que tirei. Primeiro que eu não teria essa força, essa condição para tirar algo de você. Sou um espírito também cheio de falhas; não sou melhor do que você, nem superior a você.

— Quero ter esperança. Dê-me esperança!

— É claro que você tem. É claro que continuará a lutar. E você sabe que há ligações muito profundas entre nós, porque empenhado como você estava numa tarefa inglória, toda a nossa afeição, nosso desejo de servir, de despertar o seu espírito para outras realidades concentrou-se por algum tempo de uma forma que parecia que éramos adversários. Nada disso é verdadeiro. Somos amigos, somos irmãos, somos companheiros de faltas, de erros. Fique conosco. Daremos a você aquele pouco que temos.

— E tudo o que eu perdi?

— Você não perdeu nada. Perdeu o desespero, o desengano; perdeu a falsidade, o rancor, o ódio de si mesmo e de todos os seres do mundo, inclusive do Cristo. Você ganhou, e recupera neste momento, o amor d’Aquele que, no seu ódio, você abandonou. Você ganhou; não perdeu. Siga conosco para que possa repousar e começar a refazer a sua vida.

— Ah!... estive na Alemanha, mas não entre aqueles que abraçaram a nova causa. Estava entre aqueles que prepararam a reação.

Refere-se, agora, ao período da Reforma Protestante, durante a qual o doutrinador vivera uma existência de participação ao lado dos Reformadores. Por isso, diz o doutrinador:

— Nem por isso nos tomamos inimigos, não é verdade? Pelo contrário. O Cristo nos concedeu a satisfação e o privilégio de vir a você para levar ao seu coração a nossa mensagem de carinho e de respeito, tanto eu, que estava também naquele contexto, como o companheiro maior que você conhece. A ele também devemos esta alegria, que todos nós devemos ao Cristo.

— Coisa singular, posso dizer-lhe. Nunca fui atraído para combater os chamados católicos. Porque encontrava tão pouca convicção em seu seio e muitas vezes me abrigava entre eles para combater a febre... Era a febre da Reforma, era a febre de tudo. Acho que me lembrava o fanatismo dos primeiros cristãos.

Não consegue desligar-se, ainda, do ódio aos cristãos primitivos.

— Você estava na Igreja de Roma ou na política?

— Na política mas, de certa forma, a apoiava, indiretamente (a Igreja).

Familiarizado com a história do tormentoso período, o doutrinador identifica o Espírito, que foi um dos poderosos nobres da época da Reforma. Diz-lhe baixinho o nome e é como se ele recebesse violento choque elétrico. Volta o doutrinador:

— Meu querido. Por favor, não se preocupe. Tudo está bem. Você vê que somos amigos. Depois de tudo acontecido, algo existe atrás disso para que nos fosse concedida esta oportunidade de chegar até você e trazer você de volta ao nosso coração. Muito obrigado pela coragem que você demonstrou aqui nesta confissão tão penosa, tão difícil. Já é tempo de começar a reconstruir.

— Preciso que alguém arranque minhas mãos para que eu não golpeie mais, para que eu não mate mais!

— Não. Você não vai matar mais. Você vai ter a alegria de estar novamente com seus filhos, com a sua esposa...

— Corte minhas mãos! Corte meus pés, para que não me movimente mais no erro.

— Escute! Ninguém vai cortar as suas mãos aqui. Isto não cabe a nós decidir. Você terá que esperar o planejamento que for feito. No momento, você não está em condições, nem em posição de decidir nada definitivo a respeito do seu destino futuro. Agora não é hora disso. A hora é de parar para pensar e repousar. Mais tarde, você vai ter esse planejamento todo, cuidadosamente elaborado para que as suas provacões e as suas dores sejam dosadas segundo suas condições de resistência.

— Ó meu Deus, como é dolorosa a odisseia do homem!

— É verdade. (Pausa) Não faltará coragem a você para saltar nesse mar, como você diz. As lutas o aguardam realmente. Muitas dores, muitas aflições, mas você terá forças para vencer, porque todas as dores serão dosadas e todas as provações serão planejadas segundo os seus recursos. E você terá, como sempre teve, o carinho e a compreensão do Cristo, bem como a presença dos seus amados. O trabalho é grande, mas você pode realizá-lo.

— Alguém colocou aqui na minha frente um cesto, um cesto vazio. De que deverei enchê-lo, meu Deus?

— Meu querido irmão. Perdoe. Não é nossa intenção feri-lo, nem magoá-lo, mas era preciso despertar o seu espírito para essas realidades das quais você fugia. Se fosse possível obter isso sem o fazer sofrer, nós o teríamos feito, mas você sabe que isso é impossível. Não temos esse poder.

— Ele estava dizendo (refere-se a um dos Espíritos que orientam e apoiam o trabalho mediúnico) que eu pedi para levar algo. Então, que leve esse cesto. Ele está vazio, mas poderei começar a enchê-lo.

O Espírito chora mansamente.

— Você tem aí um ponto de partida para a sua esperança no trabalho que o aguarda, no que vai ter que realizar. Tenha coragem. Confie em Deus e peça Àquele a quem você até agora não compreendera que o ajude a entendê-lo. Ele o compreende, Ele o aceita, Ele não o recusou. Nunca. Não o rejeitou nunca. Siga o caminho da paz. Deus o abençoe! Elevamos a Jesus nossas preces para que lhe dê as forças de que você necessita neste momento tão crítico da sua trajetória evolutiva. Que você tenha sempre forças para lutar e vencer o arrastamento das mazelas que todos trazemos em nós. Vá em paz, meu querido. Que Deus o abençoe.

E, por fim, a despedida em duas palavras, nas quais colocou toda a sua ternura e gratidão:

— Meu amigo!

Nosso respeito mais profundo ante a dor desse despertar aflitivo. Na dolorosa história deste companheiro, vamos encontrar o eco de nossos próprios erros e as agonias de muitos desenganos. Ele era muito jovem, estava presente na Palestina e, infelizmente para ele, gozava de certas regalias junto à corte de Herodes que, como sabemos, entendia-se bem com os romanos. Compondo um grupo de doze pessoas, ajudou a conceber o lamentável e tenebroso esquema do massacre que a história registrou como “a matança dos inocentes”.

Herodes que, desvairadamente, mandara assassinar seus próprios filhos, cuja rivalidade temia, não hesitou em autorizar a chacina. Como não sabiam quem seria aquela misteriosa criança que estava destinada a ser o Messias, o recurso foi eliminar todos os meninos nascidos no decorrer do último ano. Um deles seria o temido líder que mal interpretadas profecias pareciam configurar como Rei de Israel, libertador da opressão romana e, portanto, pretendente ao trono de Herodes, o Grande. Eram poucos os que, àquela altura, sabiam que o reino daquele menino não era deste mundo.

Expedida a ordem fatal, nosso companheiro dirige-se tranquilamente ao lar, para as suaves alegrias da vida em família com a jovem esposa e o filho amado. Algo saiu errado, tragicamente errado, porque no açodamento da matança ninguém cogitou de poupar aquela criança. É possível que nem ele próprio haja pensado nisso, pois não cuidou de proteger o seu lar. Talvez nem tivesse lembrado, ao contribuir febrilmente com sua parcela de colaboração no plano sinistro, que ele tinha precisamente um filho naquela faixa de idade.

A esposa alienou-se da realidade para poder suportar o golpe, mas ele foi condenado a manter-se lúcido para viver a tragédia que ele próprio ajudara a desencadear. Lúcido, talvez, não seja o termo exato, porque também ficou, de certa forma, alienado. Na irracionalidade do seu desespero, precisava encontrar um culpado e pensou achá-lo no próprio Cristo. Para que Jesus vivesse, fora preciso matar implacavelmente os inocentes. Para que Ele crescesse e pregasse a Sua palavra, foram inúmeras as jovens mães que enlouqueceram de dor. A culpa era, pois, do Cristo e não dele.

Regressou a Roma com a esposa alienada e, para consolar-se da perda, adotou um menino, que matou com suas próprias mãos, ao descobrir um dia que, também ele, aderira àquela maldita seita cristã. Deveria ser, a essa altura, um envelhecido e amargurado patrício. A vida terminara em rancores e revoltas não solucionadas.

Daí em diante, no mundo espiritual e aqui na carne, em vidas sucessivas, todo o seu empenho, a sua ideia fixa era perseguir e matar o maior número possível de cristãos, na ilusória e terrível expectativa de que entre os sacrificados estivesse o próprio Jesus. Queria degolá-lo e enlouquecer-lhe a mãe. Se não podia matá-lo, pelo menos destruiria Seus seguidores.

Muitas foram as oportunidades perdidas, muitas as decepções e o rancor sempre a crescer, o Cristo, a seu ver, sempre culpado de tudo. Observemos, porém, que em todo esse penosíssimo processo de alienação esteve presente o amor. À sua maneira, misturado ao ódio, ao desejo de vingança impossível, ele continuou amando a esposa e os filhos, embora cada vez mais afastado deles pelos seus próprios desatinos.

Durante a Reforma Protestante, no século XVI, dispôs de muito poder político, social, econômico e religioso. Foi da alta nobreza germânica e, uma vez mais, perseguiu cristãos com a desculpa de que eram heréticos. Aliou-se à Igreja Católica para oprimir os protestantes, ou seja, servia-se de cristãos para perseguir cristãos.

Quanto à tarefa que estava desempenhando no mundo espiritual quando se aproximou de nós, devemos calar. Um aspecto, apenas, para anotar: foi precisamente o grupo de espíritos que sofreu suas implacáveis pressões durante a Reforma que teve o privilégio de socorrê-lo. Combateu-os tenazmente, enquanto pôde; rendeu-se, leal e nobremente, quando chegou a hora. Foi recebido com amor e respeito.

Fonte: http://ensinamentos-esotericos.blogspot.com/

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