(o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)
Não variou muito em relação à norma a apresentação inicial deste Espírito. A mesma irritação de sempre, as ameaças, a arrogância, a truculência a que nos acostumamos no longo trato com os queridos irmãos desatinados pelas suas angústias. O que diferia nele era um certo aparato marcial, com o qual procurou logo de início nos intimidar. Vinha em companhia de ajudantes de ordens (Ao incorporar-se mandou que lhe passassem imediatamente o capacete).
Em seguida, falou de suas muitas condecorações, insígnias e títulos, conquistados todos por atos de excepcional bravura na sua árdua “carreira” de líder das sombras, tenazmente aplicado à tarefa de manipular gente encarnada e desencarnada a serviço da campanha de desagregação da obra de Jesus.
Depois de bem estabelecida a sua importância e a sua elevada posição na hierarquia do Umbral, quis saber das credenciais do doutrinador. Examinou-o atentamente, fingindo-se muito admirado de que ele não ostentasse nenhuma condecoração ou insígnia. Em vista de sua posição e como não tinha tempo a perder, queria saber logo com quem falar, pois o pobre doutrinador não possuía as condições mínimas de “status” para falar com ele. Este confirmou a sua própria insignificância mas, como não havia outro, propôs que falasse com ele mesmo.
— Você não fala com seus soldados? — perguntou-lhe.
— Não. A soldados eu dou ordens.
— Então, dê-me as suas ordens, foi a resposta.
— A primeira ordem é esta: ouça apenas; não fale!
Nesse tom seguiu a conversa com o orgulhoso e poderoso chefe, acostumado a ser obedecido e jamais a ser contestado. Ele apenas se dignara a vir até o grupo mediúnico por causa da premência de tempo. Vinha discutir os termos de uma trégua de três ou quatro semanas, prazo suficiente, a seu ver, para implantar um plano que estava sendo ultimado. O grupo não precisava interromper suas atividades; apenas se comprometia a não interferir com “eles”. Na pitoresca linguagem do impertinente “general”, desligaríamos a corrente das nossas cercas, permitindo que seus trabalhadores tivessem livre trânsito por ali. Haveria respeito de parte-a-parte. Nosso trabalho poderia prosseguir, cuidando de coisas diferentes, como a produção de fenômenos interessantes, nos quais “eles” se prontificavam a cooperar com a maior boa vontade.
No mesmo tom conciliador, conservando embora o matiz arrogante da sua personalidade, se propunha a resolver os problemas materiais e pessoais
dos componentes da nossa modestíssima equipe. A resposta a essas ofertas tinha que ser, enfaticamente, sim ou não. E rápido, pois o tempo urgia e ele tinha mais o que fazer. Era uma pessoa objetiva, gostava de formular perguntas objetivas e somente aceitava respostas igualmente objetivas. Aproveitando a “deixa”, o doutrinador lhe perguntou à queima-roupa, sem nenhum preparo ou expectativa:
— Você ama o Cristo?
Sentimos que ele sofreu o primeiro impacto, mas logo se recuperou do momentâneo desconcerto. Claro que não respondeu objetivamente. Escapou, após uma sensível pausa de hesitação, dizendo que a questão não estava em jogo. O doutrinador esperava a evasiva, é claro, mas lembrou a ele que, como ele acabava de verificar, nem todas as perguntas podem ser respondidas prontamente com um sim ou um não.
Passando, depois, da proposta de trégua — dentro dos seus termos, é claro — à ameaça, informou ao doutrinador que era uma pessoa ”difícil e dura”, com o que desejava dizer, obviamente — e o disse —, que, na hipótese de uma negativa, teríamos que aguentar as consequências e sermos literalmente esmagados, porque “eles” tinham que passar de qualquer maneira com os tais planos.
A despeito de tudo, porém, o diálogo prosseguia e, talvez para acrescentar mais um toque de pressão e intimidação, lembrou sua última existência na Terra, quando tivera a oportunidade de servir junto do “maior homem do mundo”.
— Quem você acha que é? — perguntou.
— O Cristo — foi a resposta.
Riu. Nada disso. Seria, porém, tão grande ou maior do que Jesus. Era o maior idealista, o mais inteligente e, também, o maior caluniado, porque não fora compreendido: destroçaram-no antes que ele pudesse concluir sua “maravilhosa” obra, o que havia sido lamentável. Essa figura de impressionante grandeza vivera ainda há pouco na Alemanha e tentara criar uma raça nova... Não será preciso dizer quem era o ídolo do nosso companheiro daquela noite...
Enfim, o debate foi longo e realmente difícil, mas nosso arrebatado interlocutor já estava, a essa altura, mais contido nas suas explosões de orgulho e prepotência e começava a mostrar certo respeito por nós. Não foi fácil levá-lo à regressão, porque ele viera fortemente “equipado” e prevenido contra as nossas “artimanhas”. Além do mais, era realmente um Espírito de personalidade vigorosa, dinâmica e experimentada. Resistiu bravamente, mas acabou cedendo.
A narrativa começa a partir do ponto na conversa com o doutrinador em que o Espírito já se encontra magnetizado, no limiar do processo de regressão de memória. A primeira fala é do doutrinador:
— Tenha confiança em nós. Vamos recuar no tempo. Venha. Até aquele ponto onde você vai encontrar as causas do seu problema pessoal. Onde está o núcleo mais sério do seu espírito, aquele que lhe causa tantas angústias, tanto desespero, tanta agitação.
Seguem-se as sugestões apropriadas. O Espírito já está em estado de transe anímico, algo sonolento e de voz um tanto pastosa. Geme, às vezes, e suspira. De repente, começa a expelir o ar pela boca, como se procurasse cuspir algo seco. O doutrinador pergunta o que está acontecendo e ele responde:
— Terra! Terra na minha boca!
Ele está caído no chão e, por isso, ao que parece, entrou um pouco de terra ou areia na sua boca. O doutrinador pergunta o que foi que aconteceu.
— Bateram-me.
— Quem bateu?
— Os soldados.
— Por quê?
— Meu corpo todo dói. Eu não estava fazendo nada.
— Eles não iriam bater em você sem razão. O que foi? Onde você mora? Que lugar é esse?
— Está tudo tão confuso. Não sei... Bateram-me... os porcos, esses porcos... Por causa “deles”... Eu não quis denunciá-la.
— Denunciar a quem?
— À minha irmã. Minha única irmã.
É judeu, segue a Lei Antiga (Moisés). A irmã tomara-se cristã, mas, afinal de contas, continuava sendo sua irmã. Por isso, ele a protegia e por isso foi espancado pelos que vieram buscá-la. Ele prossegue:
— Ela foi enfeitiçada por um velho que lhe falou do “Homem da Cruz”. E o velho a curou também. Ela sofria uma doença nos olhos.
— Ah! sei. Ela ficou boa, então, aceitou Aquele a quem você chama o “Homem da Cruz”. É isso? Aí os soldados vieram buscá-la. Para quê? Eles queriam matá-la ou prendê-la?
— Era uma traição. Ela havia sido criada para servir no Templo.
— Você é um sacerdote?
— Não. Cuido dela. Somos só nós dois.
— Depois disso aí, quando você foi batido pelos soldados, o que aconteceu? Vamos em frente.
— Tive que matar um cão nosso, para que ele não os levasse até ela. (Ela estava, pois, escondida em outro lugar, que o cão conhecia). Eles então viram que eu sabia... Tomaram meus bens... a casa...
— E a sua irmã? O que aconteceu com ela?
— Foi para aquela casa, onde tratavam dos leprosos e dos doentes.
Convertida ao Cristianismo nascente, a moça foi servir na Casa do Caminho, em Jerusalém. Era lá que ela estava, pois, e os beleguins do Templo queriam aprisioná-la para obrigá-la ao cumprimento de seus votos religiosos perante a lei antiga.
— Mas isto só depois. Eu a escondi. Fiquei sem nada, repudiado por todos, para abrigar, nem um amigo. Todos me fechavam as portas. nem uma casa.
— Sim, mas você poderia ter ido também para aquela casa, não é?
— Não... São eles que nos perderam.
— O que aconteceu depois com você? Continue.
— Revoltei-me. Fiz algo terrível. Devia estar enlouquecido. Não tinha nada. Um dia, fiquei escondido junto ao poço onde eu sabia que eles tomavam água. Mas preciso lhe contar o que aconteceu antes. Eu me encontrei, certa vez, na casa de uma pessoa que desejava muito minha irmã. E me disse que me daria meios de ir a Roma e começar outra vida e ele... mas o preço era ela!
— Aí, então, é que você foi esperá-la junto ao poço?
— Sim. Quando ela veio, eu a chamei e ela apiedou-se das minhas vestes e de minha miséria e eu a enganei. Fugi com ela e vendi-a para aquela pessoa. Mas eu... Não me faça lembrar isto!
— Você não precisa me dizer aquilo que você não quer dizer. Por favor. O importante é que você...
— Ela era linda! Linda como a aurora. E ele deu-me tudo o que eu pedi e eu, então, parti para Roma. Pensei em como eu poderia ganhar, levando-a comigo. E eu a enganei outra vez.
Ou seja, depois de vendê-la ao pretendente e receber o dinheiro, arquitetou o plano de leva-la para Roma, onde pretendia continuar vendendo seus encantos.
Nesse ponto, grita desesperado:
— Eu a levei para Roma e fiz dela uma prostituta!
— Meu querido irmão. Não se desespere. Compreendo agora a profundidade da sua dor e a dificuldade que você vem encontrando durante todo esse tempo...
— Meu Deus! grita ele. Era minha irmã! Eu a vendi!
— Estou certo de que, após esse tempo todo que passou, ela perdoou você. Estaria e está disposta a recebê-lo novamente como irmão. Mas é preciso também que você, meu querido... A falta é grave, realmente. Não preciso dizer isso, que você compreende bem...
— Eu a martirizei até à morte. Ela deve ter-me odiado. Tenho medo dos olhos dela quando me olhavam.
— Mas, escute. Isto tem muito tempo...
— Não. Não tem. Isso está aqui! Isso me acompanhou a vida inteira! — diz desesperado. — Está aqui, agora!
— Compreendo o seu remorso, a sua dor, mas é preciso que você entenda que por causa disso você não deve ficar mais dezoito ou dezenove séculos preso às suas angústias. Existe o perdão nas leis divinas, existem condições...
— Mas você não sabe... Não há perdão para mim. Você não sabe da sordidez em que vivi e a fiz viver. Enriqueci de novo. E você não sabe o pior. Ela contraiu uma doença terrível. E eu a expulsei um dia de casa.
— Meu querido amigo. Isto não nos leva a detestar você, nem a desprezar você.
— Ela passou a viver com os porcos, com os bichos. Agora diga se há perdão para mim!
— Há sim; claro que há.
— Não. Eu fui algoz, fui juiz, fui tudo. Eu... Não há perdão para mim!
— Você precisa aceitar a sua culpa como você já aceitou, mas precisa também aceitar a misericórdia de Deus...
— Deixe-me viver a minha vida! Quero viver a minha vida. Não posso nunca arriscar-me a encontrá-la. Não posso. Ela vai fulminar-me. Porque se ela não me fulminar com aquele olhar, eu mesmo me fulmino. Eu me matarei.
— Você não tem condições de matar-se. Você é um Espírito.
— Não, não. Não há perdão para mim. Como vou repor tudo aquilo que eu tirei dela? Como vou repor sua própria vida, suas ilusões, seus sonhos, que eu destruí, sua pureza que corrompi, sua bondade que eu manchei. Eu a fiz odiar, eu a fiz... Eu fiz dela um bicho, fiz dela um objeto que usei, que empenhava para ganhar dinheiro.
— Mas você não acredita que Deus possa perdoar?
— Não. Eu, se fosse Deus, não perdoaria.
— Mas você não é Deus e Ele perdoa.
— Não me fale em perdão que é uma ilusão.
— E se ela própria dissesse a você que não lhe tem nenhum rancor e que tudo isso passou? E se ela quiser ajudar você a se recuperar?
— Não posso voltar. Não posso repor tudo... Ela era como a estrela que você apanha e lança num charco. E como é que eu vou limpar toda a sujeira?
— Se ela era uma estrela, ela não se sujou; foi apenas o seu espírito que se envolveu em sombras. Ela pode ajudar com a sua luz a iluminar as sombras do seu Espírito. Você sabe muito bem... Não lhe podemos iludir. Há muita dor à sua espera...
— O que você fez de mim? Onde estou?
— Escuta: como é que eu devo te chamar?
— Chamar? Chame-me Diabo! Chame-me qualquer coisa ruim.
— Não. vou dar-lhe o nome que você merece: o de irmão. Você é um irmão que tem uma dor muito profunda e muito antiga. Respeitamos a sua dor e pedimos a você, num apelo muito sincero, muito humano, já que conviveu com essa dor tantos séculos, que comece a admitir a misericórdia de Deus.
— Dor, não! Isto não é uma dor. Isto é um inferno de fogo! Fogo e lama! É como um vulcão de lava quente, queimando, queimando...
— Um momento. Ouça. Maior do que tudo isso é a misericórdia de Deus, é o amor do Cristo, que não deixou de estender a mão a você e pedir que você também fosse ao encontro da sua irmã. Você precisa começar a se perdoar também. A admitir que também pode ser salvo dessa situação. Todos nós cometemos erros, falhas clamorosas de desentendimento, de desespero, de aflição e, no entanto, todos nós nos salvamos no tempo devido. Não através de sacramentos, de mentiras, de rituais, e sim através do nosso trabalho. E se o Cristo nos permitiu, nessa noite de hoje, que chegássemos até você, é porque Ele também continua à sua espera, tanto quanto a sua irmã.
— Isto é uma ilusão. Não. Não quero este seu mundo. Não quero! Não quero esta sua dimensão (Teme a reencarnação).
— Você prefere ficar no seu, nesse desespero? Então vamos fazer uma coisa... Espere, meu filho.
— Tenho medo!
— Vamos fazer um trato. Você fica conosco algum tempo, segue com os nossos companheiros para um lugar de repouso, de paz, onde você possa colocar tudo isso em ordem na sua cabeça, rememorar também os momentos de paz e de amor, as alegrias que teve... Porque também houve alegrias naquelas épocas em que você viveu esquecido dessas dores, mergulhado na carne. É possível até que vocês se tenham encontrado em outras vidas. E certamente vão encontrar-se no futuro. Um dia você vai estar na presença dela novamente. Você precisa estar preparado para isso. E nós lhe daremos a ajuda. Que você tem nas mãos?
— Não são as minhas mãos; foram as mãos dela. Quando ela morreu, quando foi encontrada morta, todos estranharam porque ela tinha marcas de pregos nas mãos.
— Ah! Como ela se chamava?
— Por favor, não me lembre! Por favor... Tenho medo.
— Escute, meu querido. Não precisa me dizer.
— Eu tive medo. Eram as mesmas marcas do...
Hesita em dizer o nome.
— Do Cristo, diz o doutrinador.
— Eu tive medo. E disseram que ela sorria e seu rosto estava limpo e seu corpo estava limpo. E não tinha mais doença!
— E você acha que ela não deseja encontrar-se com você? Claro que quer.
— Eu não quero encontrar-me com ela!...
— Meu filho. Ela quer ajudá-lo. Você continua sendo o irmão.
— Sou um réprobo! Deixa-me com os meus iguais! Deixa-me!
— Um momento. Fiz a você uma proposta: de levar você para um repouso, em primeiro lugar. Depois vamos conversar. Depois desse descanso, dessa meditação que você vai fazer, voltaremos a conversar.
Chora abundantemente.
— Deixa-me com meus iguais. Deixa-me! Não, não quero!
O doutrinador tenta adormecê-lo.
— Não posso! Não tenho direito a ter sono.
— Tem sim, todos nós somos filhos de Deus.
— Não tenho direito à paz. Não tenho, não tenho...