(O espírito dialoga com o doutrinador.)
O personagem desta narrativa é do gênero autoritário, agressivo, habituado a mandar e não a obedecer. Acresce que estava irritadíssimo com a interferência do grupo na sua equipe, pois a seu ver estávamos ‘aliciando’ seus trabalhadores. Na verdade, alguns dos seus auxiliares mais diretos já haviam estado conosco e resolveram não mais regressar à comunidade onde serviam aos escusos propósitos de seus mandantes.
Ele vinha, portanto, não “para responder perguntas, mas para fazê-las”. Reclama das nossas “preces incomodativas”, pois durante a semana toda nos mantivemos “ligados” a eles pelas vibrações da prece e do amor fraterno. Na sua opinião de pessoa autorizada, porque era também (disse ele) um magnetizador e conhecia os segredos da mente, tais preces eram “perigosas induções hipnóticas” que, infelizmente, influíam sobre seus auxiliares por causa da fragilidade de suas mentes. Você sabe muito bem — disse ele — que temos de trabalhar com mentes mais fracas, senão não obedecem. Que o doutrinador tentasse, porém, magnetizá-lo para ver se conseguia! Jamais! Pois ele tinha suas defesas e conhecia os artifícios e a técnica empregada.
Desse tom mais áspero, mudou depois para uma abordagem mais acalmada, propondo uma espécie de pacto de não interferência. Achava que o campo de trabalho era suficientemente amplo para todos: seguiríamos com as nossas atividades, naturalmente modificadas, de forma a não criar-lhes dificuldades, e eles prosseguiriam nas suas.
Embora não nos seja prudente aqui entrar nos pormenores da sua filosofia de trabalho, podemos dizer que era daqueles que preferem ir diretamente a Deus, sem precisar de doutrinas “subsidiárias” como a do Cristo, por exemplo. Se podíamos alcançar a própria “ciência divina”, por que perder tempo pelos atalhos? Além do mais, o Espiritismo tinha o grave defeito de ficar a suscitar complexos de
culpa, que somente serviam para atrapalhar a marcha evolutiva do ser para Deus. O erro seria mero instrumento de aprendizado. “Errei, sim — diria o homem — mas sigo em frente”. Entendia ele que o espírita, preso à noção de carma, ficava parado, resgatando as suas pretensas culpas.
Por outro lado, não era preciso que os Espíritos viessem às sessões de desobsessão para serem doutrinados. Isto também era um atraso, técnica já superada e que deveria ser prontamente abandonada.
Falou por muito tempo, admitindo, a custo, aqui e ali, a interferência e a paciente contestação do doutrinador. Estava um pouco mais sereno, mas ainda muito cônscio da sua autoridade, da sua importância, do seu nível intelectual e muito seguro de si. Voltou às ofertas de participação. Traçaríamos um plano de mútua assistência e cooperação, satisfatório a ambos os grupos, pois, insistia em dizer que havia lugar para todos. ”Eles” eram mensageiros da verdade divina e naturalmente aceitavam aquilo que, no contexto da doutrina de Jesus, estivesse de acordo com o que chamava de ”ciência divina”.
Quando lhe foi perguntado o que não estava de acordo com a ciência divina dentro dos ensinamentos evangélicos, não soube responder com a mesma vivacidade e o mesmo brilho. A partir desse ponto e após a prece habitual, começou a indução magnética. Sua reação é pronta e enérgica, pois sabe que se ceder, um pouquinho que seja, não saberá mais onde irá ter.
— Pára com isso! Não sou criança! Você quer fazer o favor de agir como um homem age? Não quero que me trate assim! Isso é uma falta de respeito. Sou uma pessoa de posição. (A essa altura já vai cedendo). Que gosto esquisito na minha boca! O que você botou na minha boca? Que gosto estranho!... O que você está querendo provar com isso? Que é forte? Que é bom magnetizador? Isso eu já sei. . . Seus fluidos viscosos. . . Esse gosto na minha boca. . . Gosto de quê, isso? Esquisito... Gosto ruim, meio adocicado. Está me fazendo mal. É algo líquido. . . É... mas esse gosto deveria estar noutra taça; não na minha! É noutra taça que está esse gosto estranho, adocicado...
— Ah! sim. Foi uma troca de taças, então, não é?
— Não sei... Sei lá do que você está falando!
— Estou apenas supondo. Havia, portanto, uma taça preparada para alguém, não é? É verdade? E você acabou tomando, não é?
— Que acabei tomando nada, menino... Não aconteceu nada. Você já está querendo me induzir coisas. Você não vai comandar minha mente, não. Não vai!
— Quem está com você?
— Deve ser algum parente seu: sua mãe, sua irmã... Que gosto estranho! Você que está me conduzindo? Não está vendo o resto? Você fica aí me fazendo criar quadros mentais, quando não tenho nada aqui na minha frente. Ninguém. Você está tentando o quê? Mistificar? É isso? Tentando criar um quadro aí? Quer que
eu diga coisas?
— Meu irmão! Você é que sabe. Eu não posso criar nada para você. O que está no seu espírito não posso mudar, meu caro.
— Não tem nada no meu espírito. Só tem esse gosto na minha boca.
— Tem a cena, também. É uma sala?
— Que cena!. . . Pára com isso. Que dor aqui no pescoço... Que é isso? Tira isso daqui! Tira essa corrente daqui. Está me incomodando. Você não pode tirar essa corrente? Essa corrente aqui, que estou falando. Tira isso daí. Deve ser essa corrente que está me apertando o pescoço.
— Você está sozinho aí? Onde é isso? É no seu palácio, na sua residência?
— Que palácio coisa nenhuma. Ai meu pescoço... Está me sufocando. . . Ai! Ah! sim, é essa gola desse manto. Está muito em cima. Bem que mandei fazer isto com a gola mais baixa um pouco, mas fazem com esse cano vindo aqui em cima. O calor está me incomodando.
O doutrinador lhe fala pacientemente, tentando encorajá-lo ao relato; quando lhe diz que é seu amigo, ele responde:
— Que amigo, nada! Eu não tenho amigos aqui dentro. Não tenho nada a mostrar nem a falar aqui. Você está enganado. Que veneno! É um licor... Quem tomar isso vai dormir o sono da tranqüilidade. Claro que não tomei...
— E por que o gosto, então?
— Não sei. Não tomei. Uma taça. É um amigo que vai chegar aí. Vai chegar naquela porta ali. Vai entrar por ali. Esta é a pequena sala em que recebo as pessoas. Vai entrar ali. E vamos tomar um bom vinho para comemorar. Mas acontece que ele não sabe. “Aquele lugar” tem que ser meu. Ninguém vai ocupá-lo. Simplesmente ele tem que ser removido. (Longa pausa cheia de hesitações). E daí. . . daí. . . o maldito trocou a taça sem eu perceber! (Em seguida grita indignado) E agora está rindo aí na minha cara! Você não está ouvindo as gargalhadas dele? Enquanto me contorço aqui, ele ri! Olha como ele dá gargalhadas, o maldito! Está vendo como ele dá gargalhadas? Você ouve?
Eu, ali, estou morrendo. Ele não sabe que isso não vai ficar assim! Vou persegui-lo. Tenho perseguido ele a vida inteira. E agora sei onde ele está. Só que para uma vingancinha diferente, estou dando corda a ele, para ele subir, subir, subir... Ele quer subir... Ele quer ser importante! Quando ele estiver lá em cima... Não sou eu que vou derrubar, não, meu caro. Não. São vocês aí mesmo. Os que estão em volta dele. Vão dizer que ele está louco. Vai cair do trono.
— Sim, mas você não queria eliminá-lo?
— Eu tinha justas razões.
— Sei. Quais são essas justas razões? Você queria o trono.
— “Aquele lugar” era para ser meu.
— Onde era esse trono?
— Onde mais? Onde houve tantos tronos?
Quando o doutrinador diz a palavra-chave, ele estremece:
— No Vaticano? Você queria ser então o sucessor de São Pedro? Governar em nome de Jesus? Não conseguiu dessa vez? Você acha que aquele irmão é o culpado?
— Ele é maldito. Maldito!
— E você conseguiu de outra vez?
— O que você não faz? Eu queria conseguir naquela época!
— E você acha que estava preparado para ser o representante de Jesus, na Terra?
— Claro... claro... claro...
— Mas, eliminando um companheiro pelo veneno?
— Claro! Tudo era possível. Ele não me eliminou pelo veneno? E ele eliminou outros pelo veneno, como eu já havia eliminado outros. O veneno era o grande segredo.
— Sim... disputando uma posição de pastor de almas ...
— Você, com o veneno, resolvia todos os problemas.
— Resolvia mesmo? Por que não resolveu o seu, meu irmão?
— É, meu amigo. . . Você conhece muito pouco dos homens para falar assim. Você também usaria o veneno, se tivesse lá na ocasião. Se te dessem a ocasião e os motivos, você usaria o veneno. O poder... O poder era tudo. Só os poderosos tinham um lugar ao sol!
— A consciência não importa?
— Não. A consciência se compra. A consciência... Você se confessa, você...
— Quem perdoa?
— Você mesmo.
— Então, não é preciso ir a Deus...
— Deus está em nós, nós estamos em Deus...
— Então você tem poderes para se perdoar a si mesmo?
— O perdão é a ausência de culpa. Eu não poderia me sentir culpado por alguém que me assassinou. A culpa dele neutralizou a minha.
— Você, então, não deve nada perante as leis do Nosso Pai?
— Não. Pelo contrário: ele que me deve. Ele me tirou a vida. Só Deus pode tirar a vida.
— Sei. Você, então, era Deus para querer tirar a vida dele?
— Que é isso? Você está torcendo as coisas.
— Meu irmão, você assumiu a posição divina e resolveu tirar a vida dele. Aí, ele trocou as taças...
— Aquilo ali é um antro de gente podre... todos os que estão ali. Procura ver as fichas deles. Nenhum deles é melhor do que eu. Todos têm crimes nas consciências... E no entanto, eles estão lá.
— Escuta, mas então, você também tem. E você não precisa da misericórdia divina também?
— Deus já me perdoou, porque Deus não condena. Não tenho sentimento de culpa. Não tenho.
— Você acha, então, que não errou?
— Mas, como? Se fui a vítima. .. Ele me matou e ainda riu; enquanto eu me contorcia ali, ele ria.
— Dentro da Igreja, dita do Cristo?
— Dentro da Igreja, numa sala reservada que eu tinha.
— Você era um Cardeal?
— Eu era quem de direito.
— Vamos, agora, mais atrás, para buscar outras razões disso. Desejo que você descubra no seu íntimo — porque está aí dentro guardado — por que você abandonou a doutrina de Jesus. Por que você não a aceita? Isto é um episódio isolado que não esclarece sua posição.
— Não tenho nada contra Jesus.
O doutrinador insiste com certa energia na regressão, no desejo de ir até as raízes do problema; caso contrário o companheiro sairia dali ainda sem estar devidamente convicto da necessidade imperiosa de reformulação das suas falsas posições. Em breves instantes ele recai no contexto de outra encarnação e começa o relato:
— Faço vinhos. Dos melhores... (O vinho outra vez...) Todos os homens importantes vêm beber na minha casa, porque tenho o melhor vinho. Sou um homem rico. E tenho Raquel, que é linda. Ela é o meu sonho. Ela é a luz desta casa.
— É sua filha?
— Sim. E está prometida a um nobre. Farei os melhores vinhos...
— E o que aconteceu a Raquel?
— Raquel? Ficou louca! Foi um velho que a enlouqueceu. Contou histórias loucas. Histórias de um louco.
— E ela seguiu o Cristo?
— Cristo? Seguiu a loucura! Largou tudo, deixou a sua casa, botou uma sandália, deu tudo de seu e foi viver entre imundos, cuidando de leprosos, doentes. Não tenho mais filha! Nunca tive uma filha...
— E você nunca mais viu Raquel?
— Raquel? Quem é Raquel? Raquel foi um sonho! Eu perdi tudo. O noivo não me
perdoou. Ele arrasou com a minha casa. Tudo por causa de um pesadelo, de uma
loucura! Está tudo rodando... rodando... (Fica extremamente aflito e se queixa de uma desesperadora tontura). E então... este velho cansado. . . Raquel. . . uma loucura! (Depois, com voz mais forte, novamente) Preciso curar Raquel! Mandei para ela um vinho, um vinho que iria curá-la para sempre, para sempre...
Chora de desespero, de impotência, de angústia. O doutrinador redobra sua atenção com ele, tratando-o com emocionada ternura. Desata-se, afinal, o dique das suas aflições em tumulto).
— Tenho que curá-la! Minha filha! Era o meu sonho, minha alegria! Está doente. É uma louca! Mandei o vinho que ia curá-la...
— E o noivo dela, você encontrou depois, não é?
— É..
— E Raquel? Você nunca mais a viu? Vamos repassar essas vidas que se seguiram a essa.
— Você já teve uma filha linda?
— Imagino, meu irmão. E pura. E dedicada ao serviço do próximo. O que está errado nela em amar o Cristo e procurar seguir a sua doutrina, curando enfermos, abandonando as riquezas?
— É uma maluquice! Toda época de colheita eu a fazia rainha da vinha. Eu a coroava com as uvas e ela botava um vestido lindo, todo branco e a coroa de uvas. Enlouqueceu!
— Mas, depois que ela ficou louca, como você diz...
— Eu a curei. Eu a libertei. Mandei um vinho.
— Então, você a matou...
— Não. Eu a livrei da loucura.
— Não fuja das palavras, meu filho. Você a matou. Acontece que o Espírito sobrevive. Você sabe disso. Não a encontrou, mais tarde, no mundo espiritual?
— Raquel? Raquel é um anjo.
— E se ela viesse aqui?
— Raquel é um anjo. Está no seio de Abraão. Não pode descer aqui.
— Ela não te abandonou, não deixou de te amar, como você não deixou de amá-la. Você gostaria de vê-la?
— Raquel? Quem é Raquel? Está tudo tão longe, está tudo fugindo! Estou longe... longe... A ponte... a ponte. Estou lá, tão longe... Não posso passar! A ponte... Não posso!
O doutrinador lhe diz uma última palavra de consolo, de estímulo e de esperança. Em seguida, ele é retirado. Aí está, com toda a sua fantástica precisão, o mecanismo das leis divinas e os desastrosos resultados que colhemos, quando tentamos ludibriá-las. O antigo comerciante de vinhos “libertou” sua amada Raquel da “loucura” de ter optado pelo Cristo. Séculos e séculos depois, em elevados postos dentro da hierarquia eclesiástica, supostamente a serviço de Jesus, planejou eliminar um rival, um competidor, que ameaçava arrebatar-lhe o chamado “Trono de S. Pedro”. Este, maquiavelicamente, manobra as taças e quem morre, sob as gargalhadas do rival, é ele.
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